VANDALISMO
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão -- esta pantera --
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente invevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
o beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
QUEIXAS NOTURNAS
Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.
O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!
Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!
Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!
E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!
Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!
É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.
Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!
Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.
Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo; o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!
Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!
Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração -- esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!
Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!
Melancolia! Estende-me tu’asa!
És a árvore em que evo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que fugi de casa!
O MEU NIRVANA
No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!
Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato -- ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias --
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!
A UM GÉRMEN
Começaste a existir, geléia crua,
E hás de crescer, no teu silêncio, tanto
Que, é natural, ainda algum dia, o pranto
Das tuas concreções plásmicas flua!
A água, em conjugação com a terra nua,
Vence o granito, deprimindo-o... O espanto
Convulsiona os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento contunua!
Antes, geléia humana, não progridas
E em retrogradações indefinidas,
Volvas à antiga inexistência calma!...
Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
De atingir, como o gémen de outros seres,
Ao supremo infortúnio de ser alma!
GUERRA
Guerra é esforço, é inquietude, á ânsia, é transporte...
É a dramatização sangrenta e dura
Da avidez com que o Espírito procura
Ser perfeito, ser máximo, ser forte!
É a Subconsciência que se transfigura
Em volição conflagradora... É a coorte
Das raças todas, que se entrega à morte
Para a felicidade da Criatura!
É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na ordem cósmica, descendo
À irracionalidade primitiva...
É a Natureza que, no seu arcano,
Precisa de encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos homens que está viva!
HINO À DOR
Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam...
És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!
Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tato
Prendo a orquestra de chamas que executas...
E, assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!
HOMO INFIMUS
Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!
O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o ômega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: -- o de chorar!
SAUDADE
Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.
À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.
E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,
Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me snagra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.
AFETOS
Bendito o amor que infiltra n’alma o enleio
E santifica da existência o cado,
-- Amor que é mirra e que é sagrado nardo,
Turificando a languidez dum seio!
O amor, porém, que da Desgraça veio
Maldito seja, seja como o fardo
Desta descrença funeral em que ardo
E com que o fogo da paixão ateio!
Funambulescamente a alma se atira
À luta das paixões, e, como a Aurora
Que ao beijo vesperal anseia e expira,
Desce para a alma o ocaso da Carícia
Ora em sonhos de Dor, supremos, e ora
Em contorções supremas de Delícia!
"O amor quer o monopólio das faculdades da alma." Schiller
domingo, 9 de maio de 2010
Augusto dos Anjos SONETOS
Ao meu Pai doente I
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!
Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
-- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!
A meu pai morto II
Madrugada de Treze de Janeiro,
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
III
Podre meu Pai! A morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.
Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!
Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
-- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!
A meu pai morto II
Madrugada de Treze de Janeiro,
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
III
Podre meu Pai! A morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.
Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
VERSOS DE AMOR (A um poeta erótico) - Augusto dos Anjos
Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.
Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!
Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias -- o inventor da flauta --
Vou inventar também outro instrumento!
Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo.
Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.
Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!
Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias -- o inventor da flauta --
Vou inventar também outro instrumento!
Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo.
Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!
VOZES DE UM TÚMULO - Augusto dos Anjos
Morri! E a Terra -- a mãe comum -- o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Por que para este cemitério vim?!
Por que?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Por que para este cemitério vim?!
Por que?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Eu, o Lobo da Estepe... Hermann Hesse
Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
pelo mundo de neve recoberto;
um corvo sai de uma árvore, adejando,
mas não há corças por aqui, nem lebres!
Vivo ansiando por achar a corça,
ah! se eu desse com uma!
Tê-la em meus dentes, entre as minhas garras,
nada seria para mim tão belo.
Havia de tratá-la tão cordial,
de cravar-lhe nas ancas os meus dentes,
beber-lhe o sangue até a saciedade
a uivar depois na noite solitário.
Contentava-me mesmo com uma lebre!
Na noite sabe bem a carne flácida.
Por que de mim há de afastar-se tudo
quanto faz esta vida mais alegre?
Em minha cauda o pêlo está grisalho
e também já não vejo as coisas nítidas;
há muito que morreu a minha esposa
e vivo a errar sonhando corças,
ansiando lebres,
ouço o vento soprar na noite fria
com neve aplaco o fogo da garganta
e levo para o diabo a minha alma.
pelo mundo de neve recoberto;
um corvo sai de uma árvore, adejando,
mas não há corças por aqui, nem lebres!
Vivo ansiando por achar a corça,
ah! se eu desse com uma!
Tê-la em meus dentes, entre as minhas garras,
nada seria para mim tão belo.
Havia de tratá-la tão cordial,
de cravar-lhe nas ancas os meus dentes,
beber-lhe o sangue até a saciedade
a uivar depois na noite solitário.
Contentava-me mesmo com uma lebre!
Na noite sabe bem a carne flácida.
Por que de mim há de afastar-se tudo
quanto faz esta vida mais alegre?
Em minha cauda o pêlo está grisalho
e também já não vejo as coisas nítidas;
há muito que morreu a minha esposa
e vivo a errar sonhando corças,
ansiando lebres,
ouço o vento soprar na noite fria
com neve aplaco o fogo da garganta
e levo para o diabo a minha alma.
Annabel Lee (de Edgar Allan Poe)
Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.
O Corvo (de Edgar Allan Poe)
1
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Cerca de grandes muros quem te sonhas (Conselho) - Pessoa
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
Autopsicografia - Pessoa
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Não a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo - Ricardo Reis
Não a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo
Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.
No Panteão faltavas. Pois que vieste
No Panteão o teu lugar ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.
Teu vulto triste e comovido sobre
A 'steril dor da humanidade antiga
Sim, nova pulcritude
Trouxe ao antigo Panteão incerto.
Mas que os teus crentes te não ergam sobre outros,
antigos deuses que dataram Por filhos de Saturno
De mais perto da origem igual das coisas.
E melhores memórias recolheram
Do primitivo caos e da Noite Onde os deuses não são
Mais que as estrelas súbditas do Fado.
Tu não és mais que um deus a mais no eterno
Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.
Panteão que preside
À nossa vida incerta.
Nem maior nem menor que os novos deuses,
Tua sombria forma dolorida
Trouxe algo que faltava
Ao número dos divos.
Por isso reina a par de outros no Olimpo,
Ou pela triste terra se quiseres
Vai enxugar o pranto
Dos humanos que sofrem.
Não venham, porém, 'stultos teus cultores
Em teu nome vedar o eterno culto
Das presenças maiores
Ou parceiras da tua.
A esses, sim, do âmago eu odeio
Do crente peito, e a esses eu não sigo,
Supersticiosos leigos
Na ciência dos deuses.
Ah, aumentai, não combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando
Cada vez maior força
P'lo número maior.
Basta os males que o
Fado as Parcas fez
Por seu intuito natural fazerem.
Nós homens nos façamos Unidos pelos deuses.
Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.
No Panteão faltavas. Pois que vieste
No Panteão o teu lugar ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.
Teu vulto triste e comovido sobre
A 'steril dor da humanidade antiga
Sim, nova pulcritude
Trouxe ao antigo Panteão incerto.
Mas que os teus crentes te não ergam sobre outros,
antigos deuses que dataram Por filhos de Saturno
De mais perto da origem igual das coisas.
E melhores memórias recolheram
Do primitivo caos e da Noite Onde os deuses não são
Mais que as estrelas súbditas do Fado.
Tu não és mais que um deus a mais no eterno
Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.
Panteão que preside
À nossa vida incerta.
Nem maior nem menor que os novos deuses,
Tua sombria forma dolorida
Trouxe algo que faltava
Ao número dos divos.
Por isso reina a par de outros no Olimpo,
Ou pela triste terra se quiseres
Vai enxugar o pranto
Dos humanos que sofrem.
Não venham, porém, 'stultos teus cultores
Em teu nome vedar o eterno culto
Das presenças maiores
Ou parceiras da tua.
A esses, sim, do âmago eu odeio
Do crente peito, e a esses eu não sigo,
Supersticiosos leigos
Na ciência dos deuses.
Ah, aumentai, não combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando
Cada vez maior força
P'lo número maior.
Basta os males que o
Fado as Parcas fez
Por seu intuito natural fazerem.
Nós homens nos façamos Unidos pelos deuses.
Nada Fica - Ricardo Reis
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
As Rosas - Ricardo Reis
As Rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
A flor que és - Ricardo Reis
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor!
Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perere
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor!
Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perere
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
PARA QUÊ?! - Florbela
Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que nosso peito ri `a gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...
Beijos d´amor? Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só acredita neles quem é louca!
Beijos d´amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que nosso peito ri `a gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...
Beijos d´amor? Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só acredita neles quem é louca!
Beijos d´amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...
MEDIDA DA SIGNIFICAÇÃO - Cecília Meireles
I
PROCUREI-ME nesta água da minha memória
que povoa tôdas as distâncias da vida
e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta imagem capaz de ficar florindo...
Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,
para sentir, na noite, o aroma da minha duração.
Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci como aquele — no entanto, árduo — ritmo
que, sôbre fingidos caminhos,
sustentou a minha passagem desejosa.
Acabei-me como a luz fugitiva
que queimou sua própria atitude
segundo a tendência do meu pensamento transformável.
Desde agora, saberei que sou sem rastros.
Esta água da minha memória reüne os sulcos feridos:
as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.
E aquilo que restaria eternamente
é tão da côr destas águas,
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletido aqui,
permanece inefável.
II
Voz obstinada, por que insistes chamando
por um nome que não corresponde mais a mim?
Não é do meu propósito que fiques ao longe sòzinha.
Nem tu sabes que espécie de saüdade abrolha na noite
e como o silêncio tenta mover-se inùtilmente,
quando diriges teus ímãs sonoros,
sondando direções!
Não é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas da minha condição.
As aparências dispersaram-se de mim,
como pássaros:
que sol se pode fixar nesta existência,
para te definir a minha aproximação?
Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:
como podes saber onde me circunscrevo,
e de que modo me pode o teu desejo atingir?
Eu mesma deixei de entender a minha substância;
tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.
Como podes chamar por mim como às coisas concretas,
e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?
III
Pela experiência do teu contentamento,
crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,
e modelo fisionomias com que te possa aparecer.
Pisarei minha solidão com renúncia e alegria
e, por entre caminhos assombrados,
resoluta virei até onde te encontres,
cortando as sombras que crescem como florestas.
Eu mesma me sentirei alucinada e exquisita,
com êsse alento das nebulosas sinistras
que se desenvolvem nas febres.
Não saberei precisamente quando me verás,
nem si compreenderei a linguagem que falas,
e os nomes que teem as tuas realidades
e o tempo dos outros acontecimentos...
Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,
embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,
e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,
e eu não possa prosseguir mais...
IV
A água da minha memória devora todos os reflexos.
Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças
e sempre se continuarão a desfazer.
É inútil o meu esforço de conservar-me;
todos os dias sou meu completo desmoronamento:
e assisto à decadência de tudo,
nestes espelhos sem reprodução.
Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,
conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.
Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,
para veres o que dêles resta
depois que chegarem a êstes ermos domínios
onde figuras e horas se decompõem.
Não precisaremos falar mais nem sentir:
seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.
E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,
olhando para esta água interminável e muda,
que não floriu, que não palpitou, que não produziu,
de tanto ser puramente imortal...
PROCUREI-ME nesta água da minha memória
que povoa tôdas as distâncias da vida
e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta imagem capaz de ficar florindo...
Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,
para sentir, na noite, o aroma da minha duração.
Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci como aquele — no entanto, árduo — ritmo
que, sôbre fingidos caminhos,
sustentou a minha passagem desejosa.
Acabei-me como a luz fugitiva
que queimou sua própria atitude
segundo a tendência do meu pensamento transformável.
Desde agora, saberei que sou sem rastros.
Esta água da minha memória reüne os sulcos feridos:
as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.
E aquilo que restaria eternamente
é tão da côr destas águas,
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletido aqui,
permanece inefável.
II
Voz obstinada, por que insistes chamando
por um nome que não corresponde mais a mim?
Não é do meu propósito que fiques ao longe sòzinha.
Nem tu sabes que espécie de saüdade abrolha na noite
e como o silêncio tenta mover-se inùtilmente,
quando diriges teus ímãs sonoros,
sondando direções!
Não é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas da minha condição.
As aparências dispersaram-se de mim,
como pássaros:
que sol se pode fixar nesta existência,
para te definir a minha aproximação?
Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:
como podes saber onde me circunscrevo,
e de que modo me pode o teu desejo atingir?
Eu mesma deixei de entender a minha substância;
tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.
Como podes chamar por mim como às coisas concretas,
e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?
III
Pela experiência do teu contentamento,
crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,
e modelo fisionomias com que te possa aparecer.
Pisarei minha solidão com renúncia e alegria
e, por entre caminhos assombrados,
resoluta virei até onde te encontres,
cortando as sombras que crescem como florestas.
Eu mesma me sentirei alucinada e exquisita,
com êsse alento das nebulosas sinistras
que se desenvolvem nas febres.
Não saberei precisamente quando me verás,
nem si compreenderei a linguagem que falas,
e os nomes que teem as tuas realidades
e o tempo dos outros acontecimentos...
Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,
embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,
e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,
e eu não possa prosseguir mais...
IV
A água da minha memória devora todos os reflexos.
Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças
e sempre se continuarão a desfazer.
É inútil o meu esforço de conservar-me;
todos os dias sou meu completo desmoronamento:
e assisto à decadência de tudo,
nestes espelhos sem reprodução.
Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,
conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.
Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,
para veres o que dêles resta
depois que chegarem a êstes ermos domínios
onde figuras e horas se decompõem.
Não precisaremos falar mais nem sentir:
seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.
E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,
olhando para esta água interminável e muda,
que não floriu, que não palpitou, que não produziu,
de tanto ser puramente imortal...
TERRA - Cecília Meireles
DEUSA dos olhos volúveis
pousada na mão das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atónitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.
Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.
Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no eléctrico
mar azul, cheio de músicas.
Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo — a noite nos muros —
casas fechadas — palmeiras —
cheiro de chácaras húmidas —
sono da existência efêmera.
O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas máguas.
E tudo caíu de súbito,
junto com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.
Vi tantos rôstos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras,
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.
Tinhas os pés sobre flôres,
e as mãos prêsas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos,
despedaçando-se anônimos,
diante da tua altitude.
Fui mudando minha angústia
numa fôrça heróica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universos de lágrimas.
Devo-te o modêlo justo:
sonho, dor, vitória e graça.
No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo —
fui como ninguém foi nunca.
Deusa dos olhos volúveis,
rôsto de espêlho tão frágil,
coração de tempo fundo,
— por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.
E êsse foi o meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
— Quando o que era muito é único
e, por ser único, é tácito.
pousada na mão das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atónitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.
Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.
Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no eléctrico
mar azul, cheio de músicas.
Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo — a noite nos muros —
casas fechadas — palmeiras —
cheiro de chácaras húmidas —
sono da existência efêmera.
O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas máguas.
E tudo caíu de súbito,
junto com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.
Vi tantos rôstos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras,
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.
Tinhas os pés sobre flôres,
e as mãos prêsas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos,
despedaçando-se anônimos,
diante da tua altitude.
Fui mudando minha angústia
numa fôrça heróica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universos de lágrimas.
Devo-te o modêlo justo:
sonho, dor, vitória e graça.
No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo —
fui como ninguém foi nunca.
Deusa dos olhos volúveis,
rôsto de espêlho tão frágil,
coração de tempo fundo,
— por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.
E êsse foi o meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
— Quando o que era muito é único
e, por ser único, é tácito.
INVERNO - Cecília Meireles
CHOVEU tanto sôbre o teu peito
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a fôrça
de buscar estradas antigas.
Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sôbre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!
Pode ser que o sol se levante
sôbre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.
Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?
A primavera foi tão clara
que se viram novas estrêlas,
e soaram no cristal dos mares,
lábios azues de outras sereias.
Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e de sêda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sêde.
Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.
Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não poude achar nenhum motivo...
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a fôrça
de buscar estradas antigas.
Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sôbre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!
Pode ser que o sol se levante
sôbre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.
Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?
A primavera foi tão clara
que se viram novas estrêlas,
e soaram no cristal dos mares,
lábios azues de outras sereias.
Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e de sêda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sêde.
Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.
Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não poude achar nenhum motivo...
A MENINA ENFÊRMA - Cecília Meireles
I
A MENINA enfêrma tem no seu quarto formas inúmeras
que inventam espantos para seus olhos sem ilusão.
Bonecos que enchem as grandes horas de pesadelos,
que lhe roubam os olhos, que lhe partem a garganta,
que arrebatam tesouros da sua mão.
Um dia, ela descobriu sòzinha que era duas!
a que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite
e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo,
balançada num céu de estrêlas invisíveis,
sem contato nenhum com o chão.
II
A mão da menina enfêrma refratou-se também na água pura,
como, outras vezes, sua voz, nesses rios do céu.
Partiu-se a mão contemplativa dentro d'água:
mas não houve mesmo amargura, mas quási delícia,
no seu pulso quebrado e exato.
E ela contempla a onda mansa:
e tudo isso é uma simples lembrança?
é uma alheia notícia?
ou algum velho retrato?
III
A menina enfêrma passeia no jardim brilhante,
de plantas húmidas, de flores frescas, de água cantante,
com pássaros sôbre a folhagem.
A menina enfêrma apanha o sol nas mãos magrinhas:
seus olhos longos teem um desenho de andorinhas
num rosto sereno de imagem.
A menina enfêrma chegou perto do dia tão mansa
e tão simples como uma lágrima sôbre a esperança.
E acaba de descobrir que as nuvens também teem movimento.
Olha-as como de muito mais longe. E com um sorriso de saüdade
põe nesses barcos brancos seus sentimentos de eternidade
e parte pelo claro vento.
A MENINA enfêrma tem no seu quarto formas inúmeras
que inventam espantos para seus olhos sem ilusão.
Bonecos que enchem as grandes horas de pesadelos,
que lhe roubam os olhos, que lhe partem a garganta,
que arrebatam tesouros da sua mão.
Um dia, ela descobriu sòzinha que era duas!
a que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite
e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo,
balançada num céu de estrêlas invisíveis,
sem contato nenhum com o chão.
II
A mão da menina enfêrma refratou-se também na água pura,
como, outras vezes, sua voz, nesses rios do céu.
Partiu-se a mão contemplativa dentro d'água:
mas não houve mesmo amargura, mas quási delícia,
no seu pulso quebrado e exato.
E ela contempla a onda mansa:
e tudo isso é uma simples lembrança?
é uma alheia notícia?
ou algum velho retrato?
III
A menina enfêrma passeia no jardim brilhante,
de plantas húmidas, de flores frescas, de água cantante,
com pássaros sôbre a folhagem.
A menina enfêrma apanha o sol nas mãos magrinhas:
seus olhos longos teem um desenho de andorinhas
num rosto sereno de imagem.
A menina enfêrma chegou perto do dia tão mansa
e tão simples como uma lágrima sôbre a esperança.
E acaba de descobrir que as nuvens também teem movimento.
Olha-as como de muito mais longe. E com um sorriso de saüdade
põe nesses barcos brancos seus sentimentos de eternidade
e parte pelo claro vento.
PERSONAGEM - Cecília Meireles
TEU NOME é quási indiferente
e nem teu rôsto já me inquieta.
A arte de amar é exatamente
a de ser poeta.
Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a idea, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.
O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nêsse deserto é que pensa
o olhar de tôdas as saüdades.
Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silencioso, obscuro, disperso.
Tôdas as máscaras da vida
se debruçam para o meu rôsto,
na alta noite desprotegida
em que experimento o meu gôsto.
Todas as mãos vindas ao mundo
desfalecem sôbre o meu peito,
e escuto o suspiro profundo
de um horizonte insatisfeito.
Oh! que se apague a bôca, o riso,
o olhar dêsses vultos precários,
pelo improvável paraíso
dos encontros imaginários!
Que ninguém e que nada exista,
de quanto a sombra em mim descansa:
— eu procuro o que não se avista,
dentre os fantasmas da esperança!
Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo — o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.
Eu só conheço o que não vejo.
E, nêsse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho...
e nem teu rôsto já me inquieta.
A arte de amar é exatamente
a de ser poeta.
Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a idea, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.
O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nêsse deserto é que pensa
o olhar de tôdas as saüdades.
Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silencioso, obscuro, disperso.
Tôdas as máscaras da vida
se debruçam para o meu rôsto,
na alta noite desprotegida
em que experimento o meu gôsto.
Todas as mãos vindas ao mundo
desfalecem sôbre o meu peito,
e escuto o suspiro profundo
de um horizonte insatisfeito.
Oh! que se apague a bôca, o riso,
o olhar dêsses vultos precários,
pelo improvável paraíso
dos encontros imaginários!
Que ninguém e que nada exista,
de quanto a sombra em mim descansa:
— eu procuro o que não se avista,
dentre os fantasmas da esperança!
Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo — o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.
Eu só conheço o que não vejo.
E, nêsse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho...
Morte Idealista - E. W.
Estou sobre a terra, onde
toda folha é morta.
Olhando para cima, vejo
o céu azul e o vento
toca levemente o rosto.
A chuva parou a pouco tempo,
a terra ainda está molhada,
um agradável perfume ficou.
Observo as flores ao meu lado
tão livres, belas de tranqüila vida.
A única coisa que estou a ouvir,
é a música orquestral da natureza.
Não muito distante ouço o riacho
onde a água pura corre entre rochas,
- melodia mais bonita de todas as músicas.
Os insetos na terra, no ar e nas plantas,
produzem ruídos suaves
que acompanham a melodia.
As aves cantam em capella, ouça
que inocente beleza!
Estou a escutar a essência da arte,
a música da vida e da morte,
é a música do renascimento.
Natureza que morre - é morta
e sempre volta, se transforma.
A água corre e evapora,
liquidifica, congela, funde-se,
percorre todas as distancias
que há no mundo e sobre ele,
e nunca deixa de existir.
Invejo os vermes que moram nesta terra,
quem me dera morrer agora e aqui apodrecer,
tornar-me verme e viver neste sossego.
E quem sabe após isto ter a sorte
em tornar-me alimento de uma ave,
ter então a suprema felicidade
de plainar sobre esta natureza,
e cantar junto aos meus iguais.
Quando a vida de pássaro terminar,
ser verme e pássaro outra vez!
Ah, quem me dera?!
Penso então, imagine como
é a alegria graciosa de ser:
Borboleta!
Voar suavemente entre lindas flores, 23
e alimentar-se do seu doce néctar.
Sempre tive enorme afeição
por animais delicados e que podem voar.
Não desejo ser grande, nem fera
pois já me basta ser humana,
a fera mais cruel que existe.
Qualquer outro animal que aqui vive,
qualquer planta que aqui existe,
quem me dera ser um de vocês!
Qualquer outro, mas não o infortúnio
de ser humana... demasiada humana!
Quem me dera poder parar o tempo?!
Quero para-lo neste exato momento,
e por toda a eternidade
não ter de ir embora daqui!
Vou até o riacho
pedir a água que leve
para longe de mim todo
o sofrimento que carrego...
Vou então aqui cavar minha cova,
para morrer dentro dela tranqüila.
Vou morrer ouvindo a música orquestral,
acompanhando o canto dos pássaros,
no ritmo que minha vida se vai lentamente.
A música não é triste nem alegre.
É a música da vida e da morte,
é a musica do renascimento!
Meu corpo quase morto,
e os vermes aguardam ao lado.
Dou adeus a esta vida sorrindo.
Sorrindo!
A música está se tornando mais lenta,
mais lenta... mais lenta... lentamente...
Escuro.
Silêncio.
Durmo.
Acórdo.
Meu corpo está morto.
Não sinto.
Não ajo.
Mas vejo,
e escuto
a música – danço.
Nem alegre nem triste – tudo.
Nem morta nem viva, nem céu nem inferno.
Bailo pelo ar – levito.
Não existe tempo,
não existe dor,
não existe amor, 24
mal lembro o que sou.
Na página branca de minha lembrança
há apenas uma frase escrita:
- Deste lugar não quero ir embora.
Agora, olhando o rosto na cova
que sorri morto, sem que eu entenda
sinto uma alegria instantânea.
Como se eu e o corpo estivéssemos felizes
por estarmos separados, e o que queríamos
nós o temos, finalmente!
toda folha é morta.
Olhando para cima, vejo
o céu azul e o vento
toca levemente o rosto.
A chuva parou a pouco tempo,
a terra ainda está molhada,
um agradável perfume ficou.
Observo as flores ao meu lado
tão livres, belas de tranqüila vida.
A única coisa que estou a ouvir,
é a música orquestral da natureza.
Não muito distante ouço o riacho
onde a água pura corre entre rochas,
- melodia mais bonita de todas as músicas.
Os insetos na terra, no ar e nas plantas,
produzem ruídos suaves
que acompanham a melodia.
As aves cantam em capella, ouça
que inocente beleza!
Estou a escutar a essência da arte,
a música da vida e da morte,
é a música do renascimento.
Natureza que morre - é morta
e sempre volta, se transforma.
A água corre e evapora,
liquidifica, congela, funde-se,
percorre todas as distancias
que há no mundo e sobre ele,
e nunca deixa de existir.
Invejo os vermes que moram nesta terra,
quem me dera morrer agora e aqui apodrecer,
tornar-me verme e viver neste sossego.
E quem sabe após isto ter a sorte
em tornar-me alimento de uma ave,
ter então a suprema felicidade
de plainar sobre esta natureza,
e cantar junto aos meus iguais.
Quando a vida de pássaro terminar,
ser verme e pássaro outra vez!
Ah, quem me dera?!
Penso então, imagine como
é a alegria graciosa de ser:
Borboleta!
Voar suavemente entre lindas flores, 23
e alimentar-se do seu doce néctar.
Sempre tive enorme afeição
por animais delicados e que podem voar.
Não desejo ser grande, nem fera
pois já me basta ser humana,
a fera mais cruel que existe.
Qualquer outro animal que aqui vive,
qualquer planta que aqui existe,
quem me dera ser um de vocês!
Qualquer outro, mas não o infortúnio
de ser humana... demasiada humana!
Quem me dera poder parar o tempo?!
Quero para-lo neste exato momento,
e por toda a eternidade
não ter de ir embora daqui!
Vou até o riacho
pedir a água que leve
para longe de mim todo
o sofrimento que carrego...
Vou então aqui cavar minha cova,
para morrer dentro dela tranqüila.
Vou morrer ouvindo a música orquestral,
acompanhando o canto dos pássaros,
no ritmo que minha vida se vai lentamente.
A música não é triste nem alegre.
É a música da vida e da morte,
é a musica do renascimento!
Meu corpo quase morto,
e os vermes aguardam ao lado.
Dou adeus a esta vida sorrindo.
Sorrindo!
A música está se tornando mais lenta,
mais lenta... mais lenta... lentamente...
Escuro.
Silêncio.
Durmo.
Acórdo.
Meu corpo está morto.
Não sinto.
Não ajo.
Mas vejo,
e escuto
a música – danço.
Nem alegre nem triste – tudo.
Nem morta nem viva, nem céu nem inferno.
Bailo pelo ar – levito.
Não existe tempo,
não existe dor,
não existe amor, 24
mal lembro o que sou.
Na página branca de minha lembrança
há apenas uma frase escrita:
- Deste lugar não quero ir embora.
Agora, olhando o rosto na cova
que sorri morto, sem que eu entenda
sinto uma alegria instantânea.
Como se eu e o corpo estivéssemos felizes
por estarmos separados, e o que queríamos
nós o temos, finalmente!
VALSA - Cecília Meireles
FEZ TANTO luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tormei a viver contigo enquanto o vento passava.
Houve uma noite que cintilou sôbre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.
Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fóra do mundo...
— Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tormei a viver contigo enquanto o vento passava.
Houve uma noite que cintilou sôbre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.
Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fóra do mundo...
— Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.
RIMANCE - Cecília Meireles
ONDE é que dói na minha vida,
para que eu me sinta tão mal?
quem foi que me deixou ferida
de ferimento tão mortal?
Eu parei diante da paisagem:
e levava uma flor na mão.
Eu parei diante da paisagem
procurando um nome de imagem
para dar à minha canção.
Nunca existiu sonho tão puro
como o da minha timidez.
Nunca existiu sonho tão puro,
nem também destino tão duro
como o que para mim se fez.
Estou caída num vale aberto,
entre serras que não teem fim.
Estou caída num vale aberto:
nunca ninguém passará perto,
nem terá notícias de mim.
Eu sinto que não tarda a morte,
e só há por mim esta flor:
eu sinto que não tarda a morte
e não sei com é que suporte
tanta solidão sem pavor.
E sofro mais ouvindo um rio
que ao longe canta pelo chão,
que deve ser límpido e frio,
mas sem dó nem recordação,
como a voz cujo murmúrio
morrerá com o meu coração.
para que eu me sinta tão mal?
quem foi que me deixou ferida
de ferimento tão mortal?
Eu parei diante da paisagem:
e levava uma flor na mão.
Eu parei diante da paisagem
procurando um nome de imagem
para dar à minha canção.
Nunca existiu sonho tão puro
como o da minha timidez.
Nunca existiu sonho tão puro,
nem também destino tão duro
como o que para mim se fez.
Estou caída num vale aberto,
entre serras que não teem fim.
Estou caída num vale aberto:
nunca ninguém passará perto,
nem terá notícias de mim.
Eu sinto que não tarda a morte,
e só há por mim esta flor:
eu sinto que não tarda a morte
e não sei com é que suporte
tanta solidão sem pavor.
E sofro mais ouvindo um rio
que ao longe canta pelo chão,
que deve ser límpido e frio,
mas sem dó nem recordação,
como a voz cujo murmúrio
morrerá com o meu coração.
MURMÚRIO - Cecília Meireles
TRAZE-ME um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.
Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.
Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saüdade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem siquer sonho — amor!
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.
Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.
Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saüdade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem siquer sonho — amor!
SERENATA - Cecília Meireles
REPARA na canção tardia
que tìmidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.
O orvalho treme sôbre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.
Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.
É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.
Repara na canção tardia
que por sôbre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.
E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.
que tìmidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.
O orvalho treme sôbre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.
Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.
É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.
Repara na canção tardia
que por sôbre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.
E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.
RETRATO - Cecília Meireles
EU NÃO tinha êste rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem êstes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem fôrça,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha êste coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espêlho ficou perdida
a minha face?
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem êstes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem fôrça,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha êste coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espêlho ficou perdida
a minha face?
Ao Longe - Ricardo Reis
Ao longe os montes têm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.
Hoje, Neera, não nos encomodamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
Não esperamos nada
E temos frio ao sol.
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.
Hoje, Neera, não nos encomodamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
Não esperamos nada
E temos frio ao sol.
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.
Em toda a noite o sono não veio - Pessoa
Em toda a noite o sono não veio. Agora
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo ?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor _
Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem
Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,
Já nada 'spera.
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo ?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor _
Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem
Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,
Já nada 'spera.
Como um vento na floresta - Pessoa
Como um vento na floresta.
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.
E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem.
E o grande ruído do vento
Que as folhas cobrem de som
Despe-me do pensamento :
Sou ninguém, temo ser bom.
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.
E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem.
E o grande ruído do vento
Que as folhas cobrem de som
Despe-me do pensamento :
Sou ninguém, temo ser bom.
Im Nebel – Hermann Hesse
Seltsam, im Nebel zu wandern!
Einsam ist jeder Busch und Stein,
kein Baum sieht den andern,
jeder ist allein.
Voll von freunden war mir die Welt,
als noch mein Leben voll Licht war,
nun, da der Nebel fällt,
ist keiner mehr sichtbar.
Wahrlich, keiner ist weise,
der nicht das Dunkel kennt,
das unentrinnbar und leise
von allen ihn trennt.
Seltsan, im Nebel zu wandern!
Leben ist einsam sein.
Kein Mensch kennt den andern,
jeder ist allein.
Einsam ist jeder Busch und Stein,
kein Baum sieht den andern,
jeder ist allein.
Voll von freunden war mir die Welt,
als noch mein Leben voll Licht war,
nun, da der Nebel fällt,
ist keiner mehr sichtbar.
Wahrlich, keiner ist weise,
der nicht das Dunkel kennt,
das unentrinnbar und leise
von allen ihn trennt.
Seltsan, im Nebel zu wandern!
Leben ist einsam sein.
Kein Mensch kennt den andern,
jeder ist allein.
Früchte Des Winters – Marie Luise Kaschnitz
Meine Eisamkeit ist noch ein Kind
weiss nicht, wie man Schneehütten baut
wie mann sich birgt in der Höhle
die Inseln auf denen ich mich ansiedeln will
verschwinden gurgelnd im Wasser
jeden Tag bebt die Erde
jede Nacht
kommen die Winde
meine Widersacher
zerreissen die Hecke
aus Traumblume Mohn.
Zu kundschaftern taugen
die nicht mehr kennen
Worte der Liebe und
Worte des Willkomms.
Auf ihrem verlorenen Posten
bleiben sie stehen
rufen werda
und reden mit Geistern.
Wenn der Tod sie anspringt
frostklirrend
aus schwarzem Gebüsch
fallen sie ihm entgegen
Früchte des Winters
umstäubt
von diamantenem Schnee.
weiss nicht, wie man Schneehütten baut
wie mann sich birgt in der Höhle
die Inseln auf denen ich mich ansiedeln will
verschwinden gurgelnd im Wasser
jeden Tag bebt die Erde
jede Nacht
kommen die Winde
meine Widersacher
zerreissen die Hecke
aus Traumblume Mohn.
Zu kundschaftern taugen
die nicht mehr kennen
Worte der Liebe und
Worte des Willkomms.
Auf ihrem verlorenen Posten
bleiben sie stehen
rufen werda
und reden mit Geistern.
Wenn der Tod sie anspringt
frostklirrend
aus schwarzem Gebüsch
fallen sie ihm entgegen
Früchte des Winters
umstäubt
von diamantenem Schnee.
Ewige Liebe - Ricarda Huch
Nicht im Paradiese,
nicht in den Gefilden
ew'ger Seligkeiten,
wenn dahin mit milden
Worten Gott mich wiese,
würd' ich freudig schreiten,
wenn ich liegen könnte
dir im Grab zur Seite,
wo von dir mich trennte
keines Fingers Breite.
Wenn von dir auch schwände
alles Fleisch, das warme,
Knochen deine Hände,
Knochen deine Arme,
wärst mit Glück und Frieden,
wenn uns nur beschieden
alle hundert Jahre
eine Stunde käme,
die den Schlaf der Bahre
von uns beiden nähme,
dass wir uns erkennten
trotz des Todes Walten
und in unsrer alten
Liebe jäh entbrennten.
nicht in den Gefilden
ew'ger Seligkeiten,
wenn dahin mit milden
Worten Gott mich wiese,
würd' ich freudig schreiten,
wenn ich liegen könnte
dir im Grab zur Seite,
wo von dir mich trennte
keines Fingers Breite.
Wenn von dir auch schwände
alles Fleisch, das warme,
Knochen deine Hände,
Knochen deine Arme,
wärst mit Glück und Frieden,
wenn uns nur beschieden
alle hundert Jahre
eine Stunde käme,
die den Schlaf der Bahre
von uns beiden nähme,
dass wir uns erkennten
trotz des Todes Walten
und in unsrer alten
Liebe jäh entbrennten.
Sehnsucht - Ricarda Huch
Um bei dir zu sein,
trüg ich Not und Fährde,
liess ich Freund und Haus
und die Fülle der Erde.
Mich verlangt nach dir,
wie die Flut nach dem Strande,
wie die Schawalbe im Herbst
nach dem südlichen Lande,
Wie den Alpsohn hein,
wenn er denkt, nachts alleine,
an die Berge voll Schnee
im Mondescheine.
trüg ich Not und Fährde,
liess ich Freund und Haus
und die Fülle der Erde.
Mich verlangt nach dir,
wie die Flut nach dem Strande,
wie die Schawalbe im Herbst
nach dem südlichen Lande,
Wie den Alpsohn hein,
wenn er denkt, nachts alleine,
an die Berge voll Schnee
im Mondescheine.
Verzückungen - Ricarda Huch
I
Wo hast du all die Schönheit hergenommen,
du liebesangesicht, du Wohlgestalt!
Um dich ist alle Welt zu kurz gekommen.
Weil du die Jugend hast, muss alles alt,
weil du das Leben hast, muss alles sterben,
weil du die Kraft hast, ist die Welt kein Hort,
weil du vollkommen bist, ist sie ein Scherben,
weil du der Himmel bist, gibt's keinen dort!
II
Du kamst zu mir, mein Abgott, meine Schlange,
in dunkler Nacht, die um dich her erglühte.
Ich diente dir mit liebesüberschwange
und trank das Feuer, das dein Atem sprühte.
Du flohst, ich suchte lang in Finsternissen.
Da kannten mich die Götter und Dämonen
an jenen Glanze, den ich dir entrissen,
und führten mich ins Licht, mit dir zu Thronen.
III
O blühende Heide, welken wirst du müssen!
Du Sternenantlitz, musst du auch vergehn?'
Es gäb ein andres Glück, als dich zu küssen,
und andre Wünsche, als dich anzusehn?
Ihr Seelenaugen, warmes Licht der Liebe,
erlöschen sollt ihr? Nie mehr widerspiegeln
die goldne Bläue über diessen Hügeln?
Du wärst dahin, und Erd' und Himmel bliebe?
Wo hast du all die Schönheit hergenommen,
du liebesangesicht, du Wohlgestalt!
Um dich ist alle Welt zu kurz gekommen.
Weil du die Jugend hast, muss alles alt,
weil du das Leben hast, muss alles sterben,
weil du die Kraft hast, ist die Welt kein Hort,
weil du vollkommen bist, ist sie ein Scherben,
weil du der Himmel bist, gibt's keinen dort!
II
Du kamst zu mir, mein Abgott, meine Schlange,
in dunkler Nacht, die um dich her erglühte.
Ich diente dir mit liebesüberschwange
und trank das Feuer, das dein Atem sprühte.
Du flohst, ich suchte lang in Finsternissen.
Da kannten mich die Götter und Dämonen
an jenen Glanze, den ich dir entrissen,
und führten mich ins Licht, mit dir zu Thronen.
III
O blühende Heide, welken wirst du müssen!
Du Sternenantlitz, musst du auch vergehn?'
Es gäb ein andres Glück, als dich zu küssen,
und andre Wünsche, als dich anzusehn?
Ihr Seelenaugen, warmes Licht der Liebe,
erlöschen sollt ihr? Nie mehr widerspiegeln
die goldne Bläue über diessen Hügeln?
Du wärst dahin, und Erd' und Himmel bliebe?
Stufen - Hermann Hesse
Wenn jede Blüte welkt und jede Jugend
dem Alter weicht, blüht jede Lebensstufe,
blüht jede Wisheit auch und jede Tugend
zu ihrer Zeit und darf nicht ewig dauern.
Es muss das Herz bei jedem Lebensrufe
bereit zum Abschied sein und Neubeginne,
um sich in Tapferkeit und ohne Trauern
in andre, neue Bindungen zu geben.
Und jedem Anfang wohnt ein Zauber inne,
der uns beschützt und der uns hilft zu leben.
Wir sollen heiter Raum um Raum durchschereiten,
an keinem wie an einer Heimat hängen,
der Welgeist will nicht fasseln uns und engen,
er will uns Stuf' um Stufe heben, weiten.
Kaum sind wir heimisch einem Lebenskreise
und traulich eingewohnt, so droht Erschlaffen;
nur wer bereit zu Aufbruch ist und Reise
mag lähmender Gewöhnung sich entraffen.
Es wird vielleicht auch noch die todesstunde
Uns neuen Räumen jung entgegensenden,
Das lebens Ruf an uns wird niemals enden...
Wohlan denn, Herz, nimm Abschied und gesunde!
dem Alter weicht, blüht jede Lebensstufe,
blüht jede Wisheit auch und jede Tugend
zu ihrer Zeit und darf nicht ewig dauern.
Es muss das Herz bei jedem Lebensrufe
bereit zum Abschied sein und Neubeginne,
um sich in Tapferkeit und ohne Trauern
in andre, neue Bindungen zu geben.
Und jedem Anfang wohnt ein Zauber inne,
der uns beschützt und der uns hilft zu leben.
Wir sollen heiter Raum um Raum durchschereiten,
an keinem wie an einer Heimat hängen,
der Welgeist will nicht fasseln uns und engen,
er will uns Stuf' um Stufe heben, weiten.
Kaum sind wir heimisch einem Lebenskreise
und traulich eingewohnt, so droht Erschlaffen;
nur wer bereit zu Aufbruch ist und Reise
mag lähmender Gewöhnung sich entraffen.
Es wird vielleicht auch noch die todesstunde
Uns neuen Räumen jung entgegensenden,
Das lebens Ruf an uns wird niemals enden...
Wohlan denn, Herz, nimm Abschied und gesunde!
Gefunden - Goethe
Ich ging im Walde
so für mich hin,
und nichts zu suchen,
das war mein Sinn.
Im Schatten sah ich
ein Blümchen stehn,
wie Sterne leuchtend,
wie Äuglein schön.
Ich wollt' es brechen,
da sprach es fein:
Soll ich zum Welken
gebrochen sein?
Ich grub's mit allen
den Würzlein aus,
zum Garten trug ich's
am hübschen Haus,
Und pflanzt' es wieder
am stillen Ort;
nun zweigt es immer
und blüht so fort.
so für mich hin,
und nichts zu suchen,
das war mein Sinn.
Im Schatten sah ich
ein Blümchen stehn,
wie Sterne leuchtend,
wie Äuglein schön.
Ich wollt' es brechen,
da sprach es fein:
Soll ich zum Welken
gebrochen sein?
Ich grub's mit allen
den Würzlein aus,
zum Garten trug ich's
am hübschen Haus,
Und pflanzt' es wieder
am stillen Ort;
nun zweigt es immer
und blüht so fort.
Heidenröslein – Goethe
Sah ein Knab ein Röslein stehn,
Röslein auf der Heiden,
war so jung und morgenschön,
lief er schnell, es nah zu sehn,
sah's mit vielen Freuden.
Röslein, Röslein, Röslein rot,
Röslein auf der Heiden.
Knabe sprach: “Ich breche dich,
Röslein auf der heiden,
Röslein sprach: “Ich steche dich,
dass du ewig denkst an mich,
und ich will's nicht leiden.
Röslein, Röslein, Röslein rot,
Röslein auf der Heiden.
Und der wilde Knabe brach
's Röslein auf der Heiden.
Röslein wehrte sich und stach.
Half ihm doch kein Weh! Und Ach!,
musst' es eben leiden.
Röslein, Röslein, Röslein rot,
Röslein auf der Heiden.
Röslein auf der Heiden,
war so jung und morgenschön,
lief er schnell, es nah zu sehn,
sah's mit vielen Freuden.
Röslein, Röslein, Röslein rot,
Röslein auf der Heiden.
Knabe sprach: “Ich breche dich,
Röslein auf der heiden,
Röslein sprach: “Ich steche dich,
dass du ewig denkst an mich,
und ich will's nicht leiden.
Röslein, Röslein, Röslein rot,
Röslein auf der Heiden.
Und der wilde Knabe brach
's Röslein auf der Heiden.
Röslein wehrte sich und stach.
Half ihm doch kein Weh! Und Ach!,
musst' es eben leiden.
Röslein, Röslein, Röslein rot,
Röslein auf der Heiden.
Die Teilung Der Erde – Friedrich Schiller
“Nehmt hin die Welt!” rief Zeus von seinen Höhen
den Menschen zu. “Nehmt, sie soll euer sein!
Euch schenk ich sie zu Erb' und ew'gem Lehen -
doch teilt euch brüderlich darein”.
De eilt', was Hände hat, sich einzurichten,
es regte sich geschäftig jung und alt.
Der ackermann griff nach des Feldes Früchten,
der Junker pirschte durch den Wald.
Der kaufmann nimmt, was seine Speicher fassen,
der Abt wählt sich den edlen Firnewein,
der König sperrt' die Brücken und die Strassen
und sprach: “der Zehente ist mein!”
Ganz spät, nachdem die Teilung längst geschehen
naht' der Poet, er kam aus weiter Fern.
Ach, da war überall nichts mehr zu sehen,
und alles hatte seinen Herrn.
“Weh mir! So soll ich denn allein von allen
vergessen sein, ich, dein getreuster Sohn?”
so liess er laut der klage Ruf erschallen
und warf sich hin vor Jovis Thron.
“Wenn du im Land der Träume dich verweilet”,
versetzt der Gott, “so hadre nicht mit mir.
Wo warst du denn, als man die Welt geteilet?”
“Ich war” sprach der Poet, “bei dir.
Mein Auge hing an deinem Angesichte,
an deines Himmels Harmonie mein Ohr -
verzeih dem Geiste, der, von deinem Lichte
berauscht, das Irdische verlor!”
“Was tun?” sprach Zeus, “die Welt ist weggegeben,
der Herbst, die Jagd, der Markt sind nicht mehr mein;
willst du in meinem Himmel mit mir leben -
so oft du kommst, er soll dir offen sein.
den Menschen zu. “Nehmt, sie soll euer sein!
Euch schenk ich sie zu Erb' und ew'gem Lehen -
doch teilt euch brüderlich darein”.
De eilt', was Hände hat, sich einzurichten,
es regte sich geschäftig jung und alt.
Der ackermann griff nach des Feldes Früchten,
der Junker pirschte durch den Wald.
Der kaufmann nimmt, was seine Speicher fassen,
der Abt wählt sich den edlen Firnewein,
der König sperrt' die Brücken und die Strassen
und sprach: “der Zehente ist mein!”
Ganz spät, nachdem die Teilung längst geschehen
naht' der Poet, er kam aus weiter Fern.
Ach, da war überall nichts mehr zu sehen,
und alles hatte seinen Herrn.
“Weh mir! So soll ich denn allein von allen
vergessen sein, ich, dein getreuster Sohn?”
so liess er laut der klage Ruf erschallen
und warf sich hin vor Jovis Thron.
“Wenn du im Land der Träume dich verweilet”,
versetzt der Gott, “so hadre nicht mit mir.
Wo warst du denn, als man die Welt geteilet?”
“Ich war” sprach der Poet, “bei dir.
Mein Auge hing an deinem Angesichte,
an deines Himmels Harmonie mein Ohr -
verzeih dem Geiste, der, von deinem Lichte
berauscht, das Irdische verlor!”
“Was tun?” sprach Zeus, “die Welt ist weggegeben,
der Herbst, die Jagd, der Markt sind nicht mehr mein;
willst du in meinem Himmel mit mir leben -
so oft du kommst, er soll dir offen sein.
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