"O amor quer o monopólio das faculdades da alma." Schiller

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Dorme enquanto eu velo...

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.



A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.



Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.
 
 
 
Esta espécie de loucura
 
Esta espécie de loucura

Que é pouco chamar talento

E que brilha em mim, na escura

Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;

Porque, enfim, sempre haverá

Sol ou sombra na cidade.

Mas em mim não sei o que há
 
 
 
O que me dói não é
 
O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...



São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.



São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.
 
 
 
Cansa ser, sentir dói, pensar destruir
 
Cansa ser, sentir dói, pensar destruir.

Alheia a nós, em nós e fora,

Rui a hora, e tudo nela rui.

Inutilmente a alma o chora.

De que serve ? O que é que tem que servir ?

Pálido esboço leve

Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir...

Vago sussuro breve.

Das pequenas vozes com que a manhã acorda,

Da fútil promessa do dia,

Morta ao nascer, na 'sperança longínqua e absurda

Em que a alma se fia.
 
 
 
Deixei atrás os erros do que fui
 
Deixei atrás os erros do que fui,

Deixei atrás os erros do que quis

E que não pude haver porque a hora flui

E ninguém é exato nem feliz.



Tudo isso como o lixo da viagem

Deixei nas circunstâncias do caminho,

No episódio que fui e na paragem,

No desvio que foi cada vizinho.



Deixei tudo isso, como quem se tapa

Por viajar com uma capa sua,

E a certa altura se desfaz da capa

E atira com a capa para a rua.








'Sim tudo é sonhar quanto sou e quero.

Tudo das mãos caídas se deixou.

Braços dispersos, desolado espero.

Mendigo pelo fim do desespero,

Que quis pedir esmola e não ousou.'







'Bem sei que há grandes sombras

Sobre áleas de esquecer,

Que há passos sobre alfombras

De quem não quer viver;

Mas deixa tudo às sombras,

Vive de não querer.'




Chove. Que fiz eu da vida? 
 
  Chove. Que fiz eu da vida?


Fiz o que ela fez de mim...

De pensada, mal vivida...

Triste de quem é assim!



Numa angústia sem remédio

Tenho febre na alma, e, ao ser,

Tenho saudade, entre o tédio,

Só do que nunca quis ter...



Quem eu pudera ter sido,

Que é dele? Entre ódios pequenos

De mim, estou de mim partido.

Se ao menos chovesse menos!
 
 
 
 
 
Fernando Pessoa

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