"Existe em mim um qualquer
defeito, uma qualquer hesitação fatal, que, se não lhe prestar
atenção, se transforma em espuma e falsidade. Contudo, mal
consigo acreditar que não possa vir a ser um grande poeta. Se
o que escrevi ontem à noite não é poesia, então o que é? Serei
demasiado rápido, demasiado fácil? Não sei. Às vezes não me
conheço, chegando mesmo a não saber como medir, contar e
classificar os grãos que compõem aquilo que sou.
Há algo que me abandona; algo que se afasta de mim e vai ao
encontro da figura que se aproxima, o que me faz ter a certeza
de a conhecer, mesmo antes de ver quem é. Como é curioso o
modo como nos transformamos na presença de um amigo - mesmo
que este esteja longe. Como é útil o serviço que os amigos nos
prestam quando nos procuram. No entanto, como é doloroso
vermos o nosso eu adulterado, misturado, como que fazendo
parte de outra criatura."
"É tão estranho sentir que a linha que se estende a partir de
nós vai avançando ao longo dos espaços enevoados que
constituem o mundo exterior."
"As minhas raízes atravessam veios de chumbo e prata, locais
húmidos e pântanos que exalam odores, até atingirem um nó
feito de raízes de carvalho, bem no centro do mundo. Surdo e
cego, com os ouvidos cheios de terra, mesmo assim escutei
rumores de guerras; e também de rouxinóis; senti o som dos
passos de inúmeras colunas de soldados precipitandoprecipitando-se em
defesa da civilização, mais ou menos como se fossem aves
migratórias em busca do Verão; vi mulheres transportando
ânforas vermelhas até às margens do Nilo. Acordei num jardim,
com uma pancada na nuca e um beijo quente; era a Jinny.
Lembro-me de tudo isto como alguém que se lembra de gritos
confusos e do desmoronar de colunas negras e vermelhas no
decorrer de um qualquer confronto nocturno. Não paro de dormir
e de acordar. Ora durmo; ora acordo."
"Regresso, qual raposa ou gato em cujas peles a geada deixou
manchas cinzentas e cujas patas endureceram devido ao contacto
com a terra dura. Abro caminho através das couves, o que faz
com que as suas folhas estalem e o orvalho que nelas repousa
vá caindo aos poucos."
"Contudo, a porta não pára de se abrir e as
pessoas vão entrando; avançam todas na minha direcção. Com
sorrisos falsos, destinados a disfarçar a crueldade, a
indiferença, apoderam-se de mim. A andorinha molha as asas; a
Lua passeia solitária através de oceanos azuis. Sou obrigada a
lhes apertar a mão; sou obrigada a responder. Mas que resposta
deverei dar? Sou obrigada a usar este corpo desajeitado, sem
graça, e a aceitar as suas manifestações de desprezo, de
indiferença, eu, que sonho com colunas de mármore e lagos
situados no outro lado do mundo, onde as andorinhas molham as
asas."
"Odeio todos os pormenores da vida individual.
Contudo, sou obrigada a escutá-los. Sinto em mim uma enorme
pressão. Não me posso mover sem deslocar o peso de séculos.
Sinto-me espicaçada por um milhão de setas. O desprezo e o
sentido do ridículo não param de me dar alfinetadas. Eu, que
seria capaz de enfrentar o granizo, e, com toda a alegria,
deixar o granizo sufocar-me, estou como presa neste local;
sinto-me exposta. O tigre salta. As línguas, semelhantes a
chicotes, não param de me atingir. Ágeis, incessantes, não
param de me bater. Tenho de fingir e mantê-los à distância
com mentiras. Qual será o amuleto capaz de me proteger deste
desastre?"
V.W.
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