"O amor quer o monopólio das faculdades da alma." Schiller

domingo, 5 de dezembro de 2010

A MÁSCARA

Contempla esse perfil de graças florentinas;

Na sóbria ondulação do corpo musculoso

Excedem Força e Proporção, irmãs divinas.

Essa mulher, fração de um ser miraculoso,

Divinamente forte, amavelmente pobre,

Criada foi para no leito arder em gozo,

Saciando os ócios de um pontífice ou de um nobre.

- Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso

onde a vaidade aflora e em êxtase perdura;

Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso,

Esse rosto sutil, na gaze da moldura,
Cujos traços nos dizem com ar vitorioso:

"A Volúpia me chama e o Amor cinge-me a testa!"

Ao ser que esplende assim com lúbrica realeza

Vê que encanto febril a formosura empresta!

Chega mais próximo e circunda-lhe a beleza.

Ó que blasfêmia da arte! Ó que assombro fatal!

A divina mulher, que ao prazer nos enlaça,

Lá no alto se transmuda em monstro bifrontal!

- Não! É uma máscara, uma sórdida trapaça,

Essa face torcida e de esquisito aspecto,

E, repara, também crispada ferozmente,

A cabeça concreta, o rosto circunspecto

Oculto por detrás do semblante que mente.

Ó mísera beleza! O magnífico rio

De teu pranto deságua ao pá de meus abrolhos;

Teu embuste me embriaga, e minha alma sacio

Nessas ondas que a Dor faz jorrar de teus olhos!

Mas por que chora enfim a beleza absoluta

Que a seus pés tem o ser humano submetido,

Que misterioso mal lhe rói o flanco em luta?

- Ela chora, insensata, por haver vivido!

E por viver ainda! E o que ela mais deplora,

O que a faz ajoelhar-se em frêmito feroz,

É que amanhã há de estar viva como agora!

Amanhã e depois e sempre! - como nós!
 
 
 
UMA CARNIÇA

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante:

Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirara miasmas e humores,

Eis que as abria desleixada e repulsiva,

O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,

Como a cozê-la em rubra pira

E para o cêntuplo volver à Natureza

Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça

Como uma flor a se entreabrir.

O fedor era tal que sobre a relva escassa

Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saíam negros bandos

De larvas, a escorrer como um líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,

Que esguichava a borbulhar,

Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,

Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,

Como vento ou água corrente,

Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita

E à joeira deixa novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,

Um frouxo esboço em agonia,

Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista

Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela

Em nós fixava o olho zangado,

Aguardando o momento de reaver àquela

Carniça abjeta o seu bocado.

- Pois há de ser como essa coisa apodrecida,

Essa medonha corrupção,

Estrela de meus olhos, sol da minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza,

Após a bênção derradeira,

Quando, sob a erva e as florações da natureza,

Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,

Ao verme que te beija o rosto,

Que eu preservarei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!
 
 
 
UM FANTASMA

I - AS TREVAS

Nos porões de tristeza impenetrável

Onde o Destino um dia me esqueceu;

Onde jamais um róseo raio ardeu,

Só com a noite, hospedeira intratável,

Sou qual pintor que um Deus, por diversão,

Na treva faz mover os seus pincéis,

Ou cozinheiro de apetites cruéis

Que assa e devora o próprio coração.

Súbito brilha e faz-se ali presente

Fantasma esplêndido e de graça extrema

Em oriental postura evanescente.

Ao atingir a perfeição suprema,

Nela percebo a bela visitante:

Ei-la! Negra e contudo fulgurante.
 
 
 
IV - O RETRATO

A Doença e a Morte tornam cinza todo

Aquele fogo que por nós ardeu.

Dos olhos a me olhar daquele modo,

Da boca onde meu ser se dissolveu,

Dos beijos sempre fiéis a uma ordem dada,

Dos êxtases mais vivos que fulgores,

Que resta? É horrível, ó minha alma! Nada

Mais que um pálido esboço de três cores

Que se extingue, como eu, na solitude,

E que o Tempo, sem pressa e em toda a parte,

Vai roçando com asa amarga e rude...

Negro assassino da Vida e da Arte,

Jamais hás de matar-me na memória

A que foi meu prazer e minha glória!
 
 
 
O IRREPARÁVEL

I

Como abafar este Remorso interminável,

Que vive, se enrosca e se agita,

E se nutre de nós como um verme insaciável,

Qual do carvalho o parasita?

Como abafar este Remorso inexorável?

Em que filtro, em que vinho, em que amarga tisana

Afogar tal praga inimiga,

Gulosa e predatória como uma mundana,

Paciente como uma formiga?

Em que filtro? - em que vinho? - em que amarga tisana?

Ah, dize, ó feiticeira! Dize, se és capaz,

A esta alma que o tormento assola,

Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz

E o casco do cavalo esfola,

Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz,

Ao moribundo a quem o lobo já fareja

E a gula do corvo amortalha,

A este soldado que, batido, ainda peleja

Por uma tumba e uma medalha;

O moribundo a quem o lobo já fareja!

Como clarear um céu ao sol indiferente,

Rasga-lhe as trevas em cortejo,

Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente,

Sem astro ou fúnebre lampejo?

Como clarear um céu ao sol indiferente?

A esperança que luz nos vidros da Estalagem

Desfez-se em meio ao torvelinho!

Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem

Aos mártires de um mau caminho?

Satã tudo extinguiu nos vidros da estalagem!

Amável feiticeira, adoras os danados?

Conhece o que nunca é salvo?

Conheces do Remorso os dardos aguçados?

Que o coração nos fazem de alvo?

Amável feiticeira, adora os danados?

O Irreparável rói com a presa maldita

Nossa lama, indigno monumento,

E muita vez ataca, assim côo a térmita,

O prédio por seu fundamento.

O irreparável rói com a presa maldita;
 
 
 
O MORTO ALEGRE

Na planície em que o lento caracol vagueia,

Quero eu mesmo cavar um buraco bem fundo,

Onde possam meus ossos repousar na areia,

Como a esqualo a dormir no pélago profundo.

Odeio o testamento e a tumba me nauseia;

Ao invés de implorar uma lágrima ao mundo,

Prefiro em vida dar aos corvos como ceia

Os trapos que me pendem do esqueleto imundo.

Ó vermes! Vós a que não chegam luz ou ruído,

Eis que vos toca um morto alegre e destemido;

Filhos da podridão, demiurgos do artifício,

Vinde pois sem remorso ungir-me os membros tortos,

E dizei-me depois se resta algum suplício

A este corpo sem alma e morto dentre os mortos!
 
 
 
BRUMAS E CHUVAS

Ó inverno, ó fim de outono, ó primavera em lama,

Dormidas estações! A minha alma vos ama

Por cobrirdes-me assim cérebro e coração

De sudário brumal, de tumba e de ilusão.

Nesta grande planura em que o Astro se derrama,

Noite em que o cata-vento é uma voz rouca r brama,

A minha alma, melhor que na morna estação,

Suas asas de corvo abrirá na amplidão.

Por certo ao coração, todo coisas esquálidas,

Sobre quem desce há muito o frio das nevadas,

Rainhas da atmosfera, ó estações descoradas,

Nada é mais doce que as vossas trevas tão pálidas,

Se a dois e dois por noite, após um triste ocaso,

Dormimos nossa dor por um leito de acaso.
 
 
A DESTRUIÇÃO

Sem cessar, ao meu lado, o Demônio arde em vão;

Nada em torno de mim como um ar vaporoso;

Eu degluto-o e sinto-o, a queimar-me o pulmão,

Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso.

Toma, ao saber o meu amor à fantasia,

A forma da mulher, que eu mais espere e ame,

E tendo sempre um ar de pura hipocrisia,

Acostuma-me a boca a haurir um filtro infame.

Longe do olhar de Deus ele conduz-me assim,

Quebrado de fadiga e numa ânsia sem fim,

Às planícies do tédio, infinitas, desertas,

E atira aos olhos meus, cheios de confusão,

Ascorosos rasgões e feridas abertas,

E os aparelhos a sangrar da Destruição!
 
 
 
A FONTE DE SANGUE

Tenho a impressão de que meu sangue em onda escorre,

Rítmico soluçar de nascente que morre.

Ouço-o bem a escorrer num murmúrio de vaga,

Mas eu tateio em vão à procura da chaga.

Através da cidade, e pelas estacadas,

Faz as ilhas nascer por todas as calçadas,

Desalterando a sede a cada criatura

O seu fluxo que sempre o universo púrpura.

Muitas vezes pedi a vinhos de prazer

Adormecerem só um dia o horror que mina;

O vinho aguça o olhar e torna a audição fina!

Eu procurei no amor um sono de esquecer;

E é-me somente o amor um colchão de punhais

Em que eu dou de beber às amadas fatais!
 
 
 
O AMOR E O CRÂNIO

O amor sobre o crânio assentado

Desta humanidade,

E sobre o trono o descarado,

A rir de maldade,

Bolhas redondas vai jocundo

Soprando pelo ar,

Como se ao mais longínquo mundo

Quisessem chegar.

O globo lúcido se espalma

E vertigem grande,

Rompe e escarra a sua fina alma,

Sonho áureo se expande.

A cada bolha o crânio é voz

Gemente a rezar:

- "Esta brincadeira feroz

Quando irá acabar?"

"Pois o que o teu lábio ferino

Joga pelo ar langue

Meu cérebro é, monstro assassino,

Meu peito e meu sangue!"
 
 
C.B.

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