"O amor quer o monopólio das faculdades da alma." Schiller

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Quem faz um poema abre uma janela
Respira, tu que está numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.

Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.

Mário Quintana


Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem

Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa


Em praias de indiferença
navega meu coração.
Venho desde a adolescência
na mesma navegação.
- Por que mar de tanta ausência,
e areias brancas de tão
despovoada inconsistência,
de penúria e de aflição?
(Triste saudade que pensa
entre resposta e a intenção!)
Números de grande urgência
gritam pela exatidão:
mas a areia branca e imensa
toda é desagregação!

Em praias de indiferença
navega meu coração.
Impossível, permanência.
Impossível, direção.
E assim por toda a existência
navegar, navegarão
os que têm por toda ciência
desencanto e devoção.

Cecília Meireles


Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição dos seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo,
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho concebê-lo!

Sossega, coração! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme.
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

"Guarda teus sonhos: Os sábios não os têm tão belos quanto os loucos!"


UMA VIAGEM A CITERA


Meu coração, uma ave, esvoaçava ditoso,

Livremente planava em torno da cordoalha;

E movia-se a nave a um amplo céu sem falha,

Como um anjo embriagado a um alto sol radioso.

Qual é esta ilha triste e sombria? É Citera.

Ela é mesmo um país famoso nas canções,

Eldorado banal de nossas ilusões.

Mas olhai-a afinal, pois é uma pobre terra.

- Ilha do coração e das festas do amor!

Da Vênus ancestral a visão soberana

Por cima de teu mar como um perfuma plana,

Nas almas a infundir misterioso langor.

Com teus mirtos azuis, tuas flores gloriosas,

Ilha, devem amar-te nação e nação,

Os suspiros em ti da alma em adoração

São incenso a rolar sobre um jardim de rosas

Ou o arrulho eternal de um longínquo pombal!

Era apenas Citera um torrão dos mais magros,

Deserta imensidão, dura de gritos agros.

Mas eu adivinhava uma cena fatal!

Não era um templo, não, de sombras florestais,

Em que a sacerdotisa, amorosa das flores,

Ia, o seu corpo a arder de secretos calores,

Entreabrindo o vestido às brisas vesperais;

Mas logo a bordejar o litoral a leste,

As aves a assustar, pairando nos espaços,

Vimos forca a subir mostrando três braços,

Destacados do céu como um negro cipreste.

Pássaros de terror sobre um cadáver vasto

Tocam a destruir o enforcado maduro,

Roíam, pondo a tenaz do bico tão impuro,

Em todos os rincões deste podre repasto;

Tinha vazio o olhar e dos flancos ridículos

Fluíam pela coxa os graves intestinos;

Cevados de delícia os negros assassinos

Tinham-lhe devorado os infames testículos.

Ao seus pés um tropel de irritados muares,

O focinho para o ar incessante rodava;

Uma besta maior no centro se agitava

Como um executor entre os seus auxiliares.

E filho de Citera, oriundo do céu pulcro,

Este insulto infernal amargavas calado

Só por expiação do teu culto execrado

E dos crimes por que te negam o sepulcro.

Risível enforcado, ah que são meus teus ais!

Eu senti só de ver os teus membros pendentes,

Como um vômito, vir aos meus trinta e dois dentes

Longo rio de fel das dores ancestrais;

Diante deste holocausto, ó criatura infeliz,

Eu ao vivo senti bicos e maxilares

Dos noturnos chacais, dos corvos tumulares,

Que punham minha carne em negro almofariz.

- O céu era de encanto e o mar todo se unia;

Eu via tudo negro e tudo sanguinário;

Ai de mim, pude ter como se num sudário

Sepulto o coração mas nesta alegoria.

Oh, Vênus, em tua ilha, eu só vi um carrasco,

Símbolo de uma forca a enforcar minha imagem...

- Concede-me, Senhor, a energia e a coragem

De olhar-me, coração e corpo, sem ter asco!
 
 
MADRIGAL TRISTE


I

Que me importa que saibas tanto?

Sê bela e taciturna! As dores

À face emprestam certo encanto,

Como à campina o rio em pranto;

A tempestade apraz às flores.

Eu te amo mais quando a alegria

Te foge ao rosto acabrunhado;

Quando a alma tens em agonia,

Quando o presente em ti desfia

A hedionda nuvem do passado.

Eu te amo quando em teu olhar

O pranto escorre como sangue;

Ou quando, a mão a te embalar,

A tua angústia ouço aflorar

Como um espasmo quase exangue.

Aspiro, volúpia divina,

Hino profundo e delicioso!

A dor que o teu seio lancina

E que, quando o olhar te ilumina,

Teu coração enche de gozo!
 
 
 
A LUA OFENDIDA


Ó Lua que em recato amavam nossos pais

Nos píncaros do azul, onde harém sorridente,

Os sóis vão te seguir, com seu cortejo ardente,

Querida Cíntia, luz das furnas ancestrais,

Não vês, em sua alcova próspera, os casais

A dormir, pondo à mostra o esmalte de seu dente?

O poeta cuja fronte o poema pensa e sente?

Ou sob a relva o amor das víboras fatais?

Sob o teu fulvo dominó, com pés de lã,

Irás, como antes, do crepúsculo à manhã,

Beijar de Endimião o pálido feitiço?

- "Vejo-te a mãe, filho de um século em desgaste,

Que exibe em seu espelho um rosto já sem viço

E que com arte apruma o seio que sugaste!"
 
 
 
LESBOS


Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,

Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,

Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,

Emolduram as noites e os dias gloriosos;

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,

Que desabam sem medo em pélagos profundos,

E correm, soluçando, em maio às colunatas,

Secretos e febris, copiosos e infecundos,

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Onde jamais ficou sem eco um só queixume,

Tal como Pafos as estrelas te veneram,

E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!

Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,

Roçam de leve o tenro pomo que as excita;

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;

Consegues teu perdão dos beijos incontáveis,

Soberana sensual de um doce e nobre império,

Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,

Imposto sem descanso aos corações sedentos,

Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito

Vagamente entrevisto em outros firmamentos!

Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

Ou condenar-te a fronte exausta de extravios,

Se nenhum deles o dilúvio pôde ver

Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,

O vosso credo, assim como os demais, é augusto,

E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!

De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo

Para cantar de tais donzelas os encantos,

E cedo eu me iniciei no mistério profundo

Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,

Qual sentinela de olho atento e indagador,

Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,

Cujas formas ao longe o azul faz supor;

E desde então do alto da Lêucade eu vigio

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,

E entre os soluços, retinindo no rochedo,

Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,

O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,

Para sabe se a onda do mar é meiga e boa!

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,

Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!

- O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta

O círculo de treva estriado pelas dores

Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

- Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,

A derramar os dons da paz de que partilha

E a flama de uma idade em áurea luz tecida

No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;

Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

- De Safo que morreu ao blasfemar um dia,

Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,

Seu belo corpo ofereceu como iguaria

A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria

Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

E desde então Lesbos em pranto lamenta,

E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,

Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta

Que lançam para os céus suas praias desertas!

E desde então Lesbos em pranto lamenta!
 
 
 
AS METAMORFOSES DO VAMPIRO


E no entanto a mulher, com lábios de framboesa

Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,

E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,

Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:

- "A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência

De no fundo de um leito afogar a consciência.

As lágrimas eu seco em meios seios triunfantes,

E os velhos faço rir com o riso dos infantes.

Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua,

As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!

Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,

Quando um homem sufoco à borda de meus lábios,

Ou quando os seio oferto ao dente que o mordisca,

Ingênua ou libertina, apática ou arisca,

Que sobre tais coxins macios e envolventes

Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"

Quando após me sugar dos ossos a medula,

Para ela me voltei já lânguido e sem gula

À procura de um beijo, uma outra eu vi então

Em cujo ventre o pus se unia à podridão!

Os dois olhos fechei em trêmula agonia,

E ao reabri-los depois, à plena luz do dia,

Ao meu lado, em lugar do manequim altivo,

No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,

Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,

Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos

Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,

Que nas noites de inverno ao vento se balança.
 
 
 
A VOZ


Meu berço ao pé da biblioteca se estendia,

Babel onde a ficção e ciência, tudo, o espolio

Da cinza negra ao pó do Lácio se fundia.

Eu tinha ali a mesma altura de um in-fólio.

Duas vozes ouvi. Uma, insidiosa, a mim

Dizia: "A Terra é um bolo apetitoso à goela;

Eu posso (e teu prazer seria então sem fim!)

Dar-te uma gula tão imensa quanto a dela."

A outra: "Vem! Vem viajar nos sonhos que semeias,

Além da realidade e do que além é infindo!"

E essa cantava como o vento nas areias,

Fantasma não se sabe ao certo de onde vindo,

Que o ouvido ao mesmo tempo atemoriza e afaga.

Eu te respondi: "Sim, doce voz!" É de então

Que data o que afinal se diz ser minha chaga,

Minha fatalidade. E por trás de telão

Dessa existência imensa, e no mais negro abismo,

Distintamente eu vejo os mundos singulares,

E, vítima do lúcido êxtase em que cismo,

Arrasto répteis a morder-me os calcanhares.

E assim como um profeta é que, desde esse dia,

Amo o deserto e a solidão do mar largo;

Que sorrio no luto e choro na alegria,

E apraz-me como suave o vinho mais amargo;

Que os fatos mais sombrios tomo por risonhos,

E que, de olhos no céu, tropeço e avanço aos poucos.

Mas a voz consola e diz: "Guarda teus sonhos:

Os sábios não os têm tão belos quanto os loucos!"


C.B.

domingo, 5 de dezembro de 2010

A MÁSCARA

Contempla esse perfil de graças florentinas;

Na sóbria ondulação do corpo musculoso

Excedem Força e Proporção, irmãs divinas.

Essa mulher, fração de um ser miraculoso,

Divinamente forte, amavelmente pobre,

Criada foi para no leito arder em gozo,

Saciando os ócios de um pontífice ou de um nobre.

- Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso

onde a vaidade aflora e em êxtase perdura;

Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso,

Esse rosto sutil, na gaze da moldura,
Cujos traços nos dizem com ar vitorioso:

"A Volúpia me chama e o Amor cinge-me a testa!"

Ao ser que esplende assim com lúbrica realeza

Vê que encanto febril a formosura empresta!

Chega mais próximo e circunda-lhe a beleza.

Ó que blasfêmia da arte! Ó que assombro fatal!

A divina mulher, que ao prazer nos enlaça,

Lá no alto se transmuda em monstro bifrontal!

- Não! É uma máscara, uma sórdida trapaça,

Essa face torcida e de esquisito aspecto,

E, repara, também crispada ferozmente,

A cabeça concreta, o rosto circunspecto

Oculto por detrás do semblante que mente.

Ó mísera beleza! O magnífico rio

De teu pranto deságua ao pá de meus abrolhos;

Teu embuste me embriaga, e minha alma sacio

Nessas ondas que a Dor faz jorrar de teus olhos!

Mas por que chora enfim a beleza absoluta

Que a seus pés tem o ser humano submetido,

Que misterioso mal lhe rói o flanco em luta?

- Ela chora, insensata, por haver vivido!

E por viver ainda! E o que ela mais deplora,

O que a faz ajoelhar-se em frêmito feroz,

É que amanhã há de estar viva como agora!

Amanhã e depois e sempre! - como nós!
 
 
 
UMA CARNIÇA

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante:

Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirara miasmas e humores,

Eis que as abria desleixada e repulsiva,

O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,

Como a cozê-la em rubra pira

E para o cêntuplo volver à Natureza

Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça

Como uma flor a se entreabrir.

O fedor era tal que sobre a relva escassa

Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saíam negros bandos

De larvas, a escorrer como um líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,

Que esguichava a borbulhar,

Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,

Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,

Como vento ou água corrente,

Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita

E à joeira deixa novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,

Um frouxo esboço em agonia,

Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista

Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela

Em nós fixava o olho zangado,

Aguardando o momento de reaver àquela

Carniça abjeta o seu bocado.

- Pois há de ser como essa coisa apodrecida,

Essa medonha corrupção,

Estrela de meus olhos, sol da minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza,

Após a bênção derradeira,

Quando, sob a erva e as florações da natureza,

Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,

Ao verme que te beija o rosto,

Que eu preservarei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!
 
 
 
UM FANTASMA

I - AS TREVAS

Nos porões de tristeza impenetrável

Onde o Destino um dia me esqueceu;

Onde jamais um róseo raio ardeu,

Só com a noite, hospedeira intratável,

Sou qual pintor que um Deus, por diversão,

Na treva faz mover os seus pincéis,

Ou cozinheiro de apetites cruéis

Que assa e devora o próprio coração.

Súbito brilha e faz-se ali presente

Fantasma esplêndido e de graça extrema

Em oriental postura evanescente.

Ao atingir a perfeição suprema,

Nela percebo a bela visitante:

Ei-la! Negra e contudo fulgurante.
 
 
 
IV - O RETRATO

A Doença e a Morte tornam cinza todo

Aquele fogo que por nós ardeu.

Dos olhos a me olhar daquele modo,

Da boca onde meu ser se dissolveu,

Dos beijos sempre fiéis a uma ordem dada,

Dos êxtases mais vivos que fulgores,

Que resta? É horrível, ó minha alma! Nada

Mais que um pálido esboço de três cores

Que se extingue, como eu, na solitude,

E que o Tempo, sem pressa e em toda a parte,

Vai roçando com asa amarga e rude...

Negro assassino da Vida e da Arte,

Jamais hás de matar-me na memória

A que foi meu prazer e minha glória!
 
 
 
O IRREPARÁVEL

I

Como abafar este Remorso interminável,

Que vive, se enrosca e se agita,

E se nutre de nós como um verme insaciável,

Qual do carvalho o parasita?

Como abafar este Remorso inexorável?

Em que filtro, em que vinho, em que amarga tisana

Afogar tal praga inimiga,

Gulosa e predatória como uma mundana,

Paciente como uma formiga?

Em que filtro? - em que vinho? - em que amarga tisana?

Ah, dize, ó feiticeira! Dize, se és capaz,

A esta alma que o tormento assola,

Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz

E o casco do cavalo esfola,

Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz,

Ao moribundo a quem o lobo já fareja

E a gula do corvo amortalha,

A este soldado que, batido, ainda peleja

Por uma tumba e uma medalha;

O moribundo a quem o lobo já fareja!

Como clarear um céu ao sol indiferente,

Rasga-lhe as trevas em cortejo,

Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente,

Sem astro ou fúnebre lampejo?

Como clarear um céu ao sol indiferente?

A esperança que luz nos vidros da Estalagem

Desfez-se em meio ao torvelinho!

Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem

Aos mártires de um mau caminho?

Satã tudo extinguiu nos vidros da estalagem!

Amável feiticeira, adoras os danados?

Conhece o que nunca é salvo?

Conheces do Remorso os dardos aguçados?

Que o coração nos fazem de alvo?

Amável feiticeira, adora os danados?

O Irreparável rói com a presa maldita

Nossa lama, indigno monumento,

E muita vez ataca, assim côo a térmita,

O prédio por seu fundamento.

O irreparável rói com a presa maldita;
 
 
 
O MORTO ALEGRE

Na planície em que o lento caracol vagueia,

Quero eu mesmo cavar um buraco bem fundo,

Onde possam meus ossos repousar na areia,

Como a esqualo a dormir no pélago profundo.

Odeio o testamento e a tumba me nauseia;

Ao invés de implorar uma lágrima ao mundo,

Prefiro em vida dar aos corvos como ceia

Os trapos que me pendem do esqueleto imundo.

Ó vermes! Vós a que não chegam luz ou ruído,

Eis que vos toca um morto alegre e destemido;

Filhos da podridão, demiurgos do artifício,

Vinde pois sem remorso ungir-me os membros tortos,

E dizei-me depois se resta algum suplício

A este corpo sem alma e morto dentre os mortos!
 
 
 
BRUMAS E CHUVAS

Ó inverno, ó fim de outono, ó primavera em lama,

Dormidas estações! A minha alma vos ama

Por cobrirdes-me assim cérebro e coração

De sudário brumal, de tumba e de ilusão.

Nesta grande planura em que o Astro se derrama,

Noite em que o cata-vento é uma voz rouca r brama,

A minha alma, melhor que na morna estação,

Suas asas de corvo abrirá na amplidão.

Por certo ao coração, todo coisas esquálidas,

Sobre quem desce há muito o frio das nevadas,

Rainhas da atmosfera, ó estações descoradas,

Nada é mais doce que as vossas trevas tão pálidas,

Se a dois e dois por noite, após um triste ocaso,

Dormimos nossa dor por um leito de acaso.
 
 
A DESTRUIÇÃO

Sem cessar, ao meu lado, o Demônio arde em vão;

Nada em torno de mim como um ar vaporoso;

Eu degluto-o e sinto-o, a queimar-me o pulmão,

Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso.

Toma, ao saber o meu amor à fantasia,

A forma da mulher, que eu mais espere e ame,

E tendo sempre um ar de pura hipocrisia,

Acostuma-me a boca a haurir um filtro infame.

Longe do olhar de Deus ele conduz-me assim,

Quebrado de fadiga e numa ânsia sem fim,

Às planícies do tédio, infinitas, desertas,

E atira aos olhos meus, cheios de confusão,

Ascorosos rasgões e feridas abertas,

E os aparelhos a sangrar da Destruição!
 
 
 
A FONTE DE SANGUE

Tenho a impressão de que meu sangue em onda escorre,

Rítmico soluçar de nascente que morre.

Ouço-o bem a escorrer num murmúrio de vaga,

Mas eu tateio em vão à procura da chaga.

Através da cidade, e pelas estacadas,

Faz as ilhas nascer por todas as calçadas,

Desalterando a sede a cada criatura

O seu fluxo que sempre o universo púrpura.

Muitas vezes pedi a vinhos de prazer

Adormecerem só um dia o horror que mina;

O vinho aguça o olhar e torna a audição fina!

Eu procurei no amor um sono de esquecer;

E é-me somente o amor um colchão de punhais

Em que eu dou de beber às amadas fatais!
 
 
 
O AMOR E O CRÂNIO

O amor sobre o crânio assentado

Desta humanidade,

E sobre o trono o descarado,

A rir de maldade,

Bolhas redondas vai jocundo

Soprando pelo ar,

Como se ao mais longínquo mundo

Quisessem chegar.

O globo lúcido se espalma

E vertigem grande,

Rompe e escarra a sua fina alma,

Sonho áureo se expande.

A cada bolha o crânio é voz

Gemente a rezar:

- "Esta brincadeira feroz

Quando irá acabar?"

"Pois o que o teu lábio ferino

Joga pelo ar langue

Meu cérebro é, monstro assassino,

Meu peito e meu sangue!"
 
 
C.B.