"O amor quer o monopólio das faculdades da alma." Schiller

domingo, 29 de agosto de 2010

Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos. 2 fevereiro 1911.

Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!



AUGUSTO DOS ANJOS

terça-feira, 24 de agosto de 2010

"Ó Nau Felizes, que do mar vago
Volveis enfim ao silêncio do porto
Depois de tanto noturno mal -
Meu coração é um morto lago,
E à margem triste do lago morto
Sonha um castelo medieval...

E nesse, onde sonha, castelo triste,
Nem sabe saber a, de mãos formosas
Sem gesto ou cor, triste castelã
Que um porto além rumoroso existe,
Donde as naus negras e silenciosas
Se partem quando é no mar amanhã...

Nem sequer sabe que há o, onde sonha,
Castelo triste... Seu spírito monge
Para nada externo é perto e real...
E enquanto ela assim se esquece, tristonha,
Regressam, velas no mar ao longe,
As naus ao porto medieval..."



"O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.


Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha


O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade."
 
 
"Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo."
 

"Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
O que quis? Tenho as mãos vazias,
Crispadas febrilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta.
O que vivi? Era tão bom dormir!"
 (Álvaro de Campos)


"O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar."
 
Fernando Pessoa
"Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,   
Dizendo coisas que ninguém entende!  
Da tua cantilena se desprende  
Um sonho de magia e de pecados.
Dos teus pálidos dedos delicados  
Uma alada canção palpita e ascende,  
Frases que a nossa boca não aprende,  
Murmúrios por caminhos desolados.
Pelo meu rosto branco, sempre frio,  
Fazes passar o lúgubre arrepio  
Das sensações estranhas, dolorosas…
Talvez um dia entenda o teu mistério…  
Quando, inerte, na paz do cemitério,  
O meu corpo matar a fome às rosas!"


 "Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O vôo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
- Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minh’ alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? - Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!..."


"Se me ponho a cismar em outras eras
em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!"

Florbela Espanca

Algumas obras de Ricardo Reis

"Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos, Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso."



Aqui, Dizeis

Aqui, dizeis, na cova a que me abeiro,
Não stá quem eu amei. Olhar nem riso
Se escondem nesta leira.
Ah, mas olhos e boca aqui se escondem!
Mãos apertei, não alma, e aqui jazem.
Homem, um corpo choro!



Este Seu Escasso Campo

Este, seu ‘scasso campo ora lavrando,
Ora solene, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, goza incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que concílios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as ervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua.


Não Queiras

Não queiras, Lídia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?


Atrás Não Torna

Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve
Sua face, Saturno.
Sua severa fronte reconhece
Só o lugar do futuro.
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.


Não Só Vinho

Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão a alma,
Consigamos, pensando; recolhidos
No impalpável destino
Que não spera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal boca
Em frágil taça o passageiro vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver


A Cada Qual

A cada qual, como a statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.
Nada é prêmio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo.


Gozo Sonhado

Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.


"Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.

Vê como Ceres é a mesma sempre
E como os louros campos intumesce
E os cala prás avenas
Dos agrados de Pã.

Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.

E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã.
Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.

Quer troe Júpiter nos céus toldados.
Quer apedreje com as suas ondas
Netuno as planas praias
E os erguidos rochedos.

Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
Por isso as esqueçamos
Como se não houvessem.

Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
Não nos vale pensarmos
No futuro sabido

Que aos nossos olhos tirará Apolo
E nos porá longe de Ceres e onde
Nenhum Pã cace à flauta
Nenhuma branca ninfa.

Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
De ir imitando os deuses
Até sentir-lhe a calma.

Venha depois com as suas cãs caídas
A velhice, que os deuses concederam
Que esta hora por ser sua
Não sofra de Saturno

Mas seja o templo onde sejamos deuses
Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios
Nem precisam de crentes 
Os que de si o foram."

 

A Nada Imploram

A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo
Da úmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
Te ergue qual eras, hoje
Cortiço apodrecido.

E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
Não lembra. A ode grava,
Anônimo, um sorriso.


"Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
"

Breve o Dia

Breve o dia, breve o ano, breve tudo.
Não tarda nada sermos.
Isto, pensado, me de a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que mágoa, é vida.



"Frutos, dão-os as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.
Quantos reinos nos seres e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Quantos,
Com a charrua,
Sonhos, cidades!

Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados!
Abdica e sê
Rei de ti mesmo."


É tão Suave

É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,

Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
Nos dão o alto prêmio
De nos deixarem ser

Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,

Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas.

E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras

Como quem guarda a croa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,

Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo.


Domina ou Cala

Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.


 "Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida."

Azuis os Montes

Azuis os montes que estão longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Nada quero.
Que pesa o escrúpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vário, e como eles,
Exterior a mim, me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às férias em que existo.

Meu Gesto

Meu gesto que destrói
A mole das formigas,
Tomá-lo-ão elas por de um ser divino;
Mas eu não sou divino para mim.

Assim talvez os deuses
Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Tirem o serem deuses para nós.

Seja qual for o certo,
Mesmo para com esses
Que cremos serem deuses, não sejamos
Inteiros numa fé talvez sem causa.


Lenta, Descansa

Lenta, descansa a onda que a maré deixa.
Pesada cede. Tudo é sossegado.
Só o que é de homem se ouve.
Cresce a vinda da lua.
Nesta hora, Lídia ou Neera Ou Cloe,
Qualquer de vós me é estranha, que me inclino
Para o segredo dito
Pelo silêncio incerto.
Tomo nas mãos, como caveira, ou chave
De supérfluo sepulcro, o meu destino,
E ignaro o aborreço
Sem coração que o sinta.


Cada Um

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado
 





quinta-feira, 19 de agosto de 2010


Agosto, 18

Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo, igualmente, a fonte de suas desgraças? O intenso sentimento do meu coração pela natureza em seu esplendor, sentimento que tanto me
deliciava, transformando em paraíso o mundo que me cerca, tornou-se para mim um tormento intolerável, um fantasma que me tortura e persegue. por toda parte. Outrora, quando, do alto de um rochedo, abrangendo com o olhar, para além do riacho, desde os vales férteis até as colinas, ao longe, eu via em torno de mim tudo germinar e frondescer; quando eu contemplava essas montanhas cobertas, da base aos píncaros, de árvores ramalhudas, e os vales sinuosos ensombrados de bosques deliciosos, o riacho que escorre tranqüilo entre os caniçais murmurejantes, refletindo as nuvens que a brisa da tarde molemente faz flutuar no céu; depois, quando eu ouvia os pássaros animar com os seus cantos a floresta inteira, e enxames e mais enxames de moscardos dançando alegremente no ultimo raio purpureo do sol. cujo olhar de adeus, rápido como um relâmpago, libertava da prisão, entre as ervas, um escaravelho zumbidor; quando os ruídos e o movimento confuso em torno despertavam a minha atenção para o musgo que tira a sua seiva da pedra dura, e a giesta que cresce na encosta arenosa da colina, e tudo isso me revelava a vida interior ardente e sagrada da natureza - com que calor o meu coração abarcava esse mundo de coisas! De algum modo, era como se eu me tornasse um Deus pela plenitude de emoção que transbordava de mim, e as magníficas imagens do mundo infinito, agitando-se em minha alma, enchiam-na de uma vida nova. Via-me cercado de montanhas gigantescas; diante de mim abriam-se abismos onde se precipitavam as torrentes formadas pelas chuvas das ,tempestades. Embaixo, os rios rolavam suas ondas impetuosas, as florestas e as montanhas estremeciam. Eu via todas as forças insondáveis da natureza agir umas sobre as outras, e juntas se fecundarem na profundeza da terra; via espécies diversas de criaturas pulular sobre a terra e sob os céus. Tudo se povoava de milhares de formas diferentes, e os primeiros homens se reuniam em sociedade, nas 'cabanas; depois, construíam suas casas definitivas, passando a reinar sobre o mundo inteiro! Pobre homem insensato, que julgas todas as coisas pequenas, por que és, também, tão pequeno? Desde as montanhas inacessíveis, para além do deserto que nenhum pé humano calcou, até a extremidade do oceano desconhecido, sopra o espírito daquele que cria, incessantemente, e rejubila-se a cada átomo de pó vivificado graças à sua palavra! Ali! quantas vezes, naquele tempo, ardentemente desejei deixar-me arrebatar, nas asas do grou que adejava sobre a minha cabeça, rumo às margens desse mar que homem nenhum conseguiu medir, para beber, na taça espumejante do infinito, a vida embriagadora que enche o coração, para sentir, um só momento, fraco e limitado como me sinto, correr em minhas veias uma gota da felicidade proporcionada pelo ser que produz todas as coisas em si e por si mesmo.
Irmão. só a lembrança dessas horas basta para me fazer feliz! 0 próprio esforço feito para reviver em mim essas sensações indizíveis, e para exprimi-las, faz com que minha alma a si mesma se supere, mas para em seguida obrigar-me a sentir duplamente o horror da minha atual situação.
Parece que um véu se rasgou diante de minha alma e o teatro da vida infinita mudou-se, para mim, num tumulo eternamente escancarado. Podes tu afirmar: "Isto existe. , quando tudo passa, rola e desaparece como um clarão; quando raramente a existência de um ser se prolonga até o esgotamento total das suas forças; quando, ai de mim, absorvido pela corrente, esse mesmo ser vai quebrar-se contra os rochedos? Não há um momento que não devore a ti e aos teus; não há um só instante em que tu não destruas, não sejas forçado a destruir. 0 teu passeio mais inocente custa a vida a centenas de pobres vermezinhos. Com uma passada, tu deitas abaixo os edifícios penosamente erigidos pelas formigas, e fechas de modo ignominioso a tumba sobre todo umpequeno universo. . . Ah! as grandes e raras calamidades deste mundo, as inundações que arrasam as nossas aldeias, os tremores de terra que engolem as nossas cidades, nada disso me comove; o que me dilacera o coração é esta força destruidora oculta em toda a natureza, esta força que nada cria senão para destruir-se e destruir o que a cerca ao mesmo tempo. Assim prossigo eu, vacilante e o coração opresso, entre o céu e a terra com as suas forças sempre ativas, e nada mais vejo senão um monstro que devora eternamente todas as coisas, fazendo-as depois reaparecer, para de novo devorá-las.

Agosto, 28

Na verdade, se o meu mal fosse suscetível de cura, estas excelentes criaturas te-la-iam conseguido. Sendo hoje dia do meu aniversário, pela manhã recebi um pequeno embrulho da parte de Alberto. Abrindo-o, descobri logo um dos nós cor-de-rosa que Carlota trazia no corpete, quando a vi pela primeira vez e, depois, não me cansei de pedir-lhe. Havia, ainda dois volumes in-12, a edição portátil de Homero, que tanto desejava para não mais carregar a de Ernesti em meus passeios. Você ve como Eles correm ao encontro dos meus desejos, como Eles procuram a ocasião para estas pequenas finezas de amizade, mil vezes mais preciosas do que os presentes suntuosos com os quais a vaidade do doador procura humilhar-nos. Beijo mil vezes o nó cor-de-rosa e, a todo momento, minha alma aspira a recordação das delícias de que tenho sido cumulado nestes poucos dias felizes, que passam e não voltam mais. Wahlheim, tudo é assim e não tenho por que lastimar: as flores da vida são aparições fugidias!
Quantas delas se estiolam sem deixar vestígios! Quão poucas produzem frutos e, ainda assim, desses frutos, quão poucos chegam à maturidade! E, no entanto, ainda sobram muitos; e, no entanto ... ó meu irmão, poderemos nós desprezar os frutos maduros, e deixar que apodreçam sem have-los saboreado? Adeus. Temos aqui um verão soberbo. Subo sempre nas árvores do pomar de Carlota e, armado de uma longa vara, atinjo as peras que se acham nas grimpas. De pé junto do tronco, embaixo, ela toma os frutos das minhas mãos, à medida que os vou colhendo.

Agosto, 30

Infeliz! Não passas de um insensato! Por que. procuras enganar-te a ti mesmo? De que te servirá essa paixão furiosa e sem limites?... Não posso dirigir minhas preces senão a ela; nenhuma outra figura, a não ser a dela, se apresenta à minha imaginação, e o mundo que me cerca, só o percebo
quando tem com ela alguma relação. Só assim consigo fruir algumas horas de felicidade. . . até o momento em que é preciso que me retire de junto! ó Wahlheim, se você soubesse até onde me leva o coração! Quando Passo junto dela duas ou tres horas, alimentando-me da sua presença, das suas
maneiras, da expressão celestial das suas palavras, pouco a pouco todos os meus sentidos adquirem uma tensão excessiva, meus olhos deixam de enxergar, mal consigo ouvir, sinto como que a mão de um assassino constringindo-me a garganta. Batendo desordenadamente, meu coração procura atenuar a angustia dos meus sentidos, mas apenas consegue aumentar a minha perturbação ... Wahlheim, quantas vezes, então, nem chego a saber se vivo neste mundo! E, a menos que (o que sucede com freqüencia) a tristeza me empolgue por completo, e Carlota me conceda o humilde conforto de desafogar meu coração oprimido, banhando suas mãos nas minhas lágrimas, é preciso que eu, me afaste, que saia e vá errar pelos campos, bem longe! Agrada-me, então, galgar uma montanha a pique, embrenhar-me através do bosque impenetrável, ferindo-me nas armadilhas de caça, dilacerando-me nos espinheiros. Só então me sinto um pouco aliviado! Um pouco, que digo eu? Quantas e quantas vezes, quando me estiro no caminho prostrado de fadiga e de sede, ou quando, alta noite, enquanto a lua resplende sobre a minha cabeça, sento-me sobre um tronco de árvore no seio da floresta, para aliviar meus pés doloridos, esmoreço na meia-luz duvidosa da espessura e durmo um sono fatigante! ó Wahlheim, a permanencia numa célula solitária, o cilício e o cíngulo de pontas de ferro são o consolo a que minha alma aspira! ... Adeus! Só veio um fim a
esses tormentos: o tumulo .

Outubro, 27
Quantas vezes tenho vontade de rasgar o peito e estourar o crânio vendo que somos tão pouca coisa uns para os outros! Ah! o que trago em mim de amor, - alegria, calor e embriaguez só de mim depende, não me poderá ser dado por outrem; e, o coração transbordando de felicidade, não poderei fazer feliz esse outrem, se Ele permanece frio e sem força diante de mim.



Novembro, 3

Só Deus sabe quantas vezes mergulho no sono com a esperança de nunca mais despertar; e, pela manhã, quando arregalo os olhos e torno a ver o sol, sinto-me profundamente infeliz. Oh! se eu pudesse mudar de humor, entregar-me ao tempo, a isto ou àquilo, ao insucesso de uma iniciativa qualquer, ao menos o fardo dos meus aborrecimentos não pesaria tanto. Que desgraçado que sou! Sinto-me perfeitamente o unico culpado ... Não, não sou culpado, mas é em mim que está a fonte de todos os meus males, como outrora a fonte de toda a minha felicidade. Não serei mais o homem que então nadava num mar de rosas, e a cada passo via surgir um paraíso, e cujo amor era capaz de abranger o mundo inteiro? Mas o coração que assim pulsava está morto, não produz mais os arrebatamentos de outros tempos; meus olhos, agora secos, não se refrescam mais de lágrimas benfazejas, e a angustia abafa os meus sentidos, contrai e enruga a minha fronte. Aumenta o meu sofrimento verificar que perdi aquilo que fazia o encanto da minha vida: sagrada e tumultuosa força graças à qual podia criar mundos e mundos em torno de mim. Essa força não mais existe! Quando contemplo, da minha janela, o sol matutino rasgar a bruma sobre a colina distante, iluminando a campina silenciosa no fundo do vale, e vejo o riacho tranqüilo correndo para mim e serpenteando entre os salgueiros desfolhados, essa natureza me parece fria e inanimada como uma
estampa colorida. Todos esses encantos não, me podem fazer subir do coração ao cérebro a menor sensação de felicidade, e todo o meu ser permanece perante Deus como uma fonte estancada, como uma ânfora vazia! Quantas vezes caio de joelhos sobre a terra, implorando de Deus algumas lágrimas, como um semeador implora a chuva, se sobre a sua cabeça o céu é de bronze e, em torno, a terra estala de sede.

Mas, ai de mim, não é a impetuosidade das nossas preces que fará com que Deus conceda a chuva e o sol. E os tempos, de que sinto uma torturante saudade, só eram felizes porque pacientemente eu me confiava ao seu espírito e recebia de todo o coração, com um vivo reconhecimento, as delícias que Ele derramava sobre Mim.

Paris,
17 de fevereiro de 1903

Prezado Senhor,

Sua carta só me alcançou há poucos dias.
Quero lhe agradecer por sua grande e amável con-
fiança. Mas é só isso o que posso fazer. Não posso
entrar em considerações sobre a forma dos seus
versos; pois me afasto de qualquer intenção crí-
tica. Não há nada que toque menos uma obra de
arte do que palavras de crítica: elas não passam de
mal-entendidos mais ou menos afortunados. As
coisas em geral não são tão fáceis de apreender e
dizer como normalmente nos querem levar a acre-
ditar; a maioria dos acontecimentos é indizível,
realiza-se em um espaço que nunca uma palavra
penetrou, e mais indizíveis do que todos os aconte-
cimentos são as obras de arte, existências miste-
riosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que
passa.
Feita essa observação prévia, posso lhe dizer
ainda que seus versos não possuem uma forma pró-
pria, mas apenas indicações silenciosas e veladas
de personalidade. Sinto esse tipo de indicação de
modo mais claro no último poema, “Minha alma”.
Ali, algo de próprio quer ganhar expressão. E no
belo poema “A Leopardi” talvez se desenvolva uma
espécie de afinidade com aquele grande solitário.
Apesar disso, os poemas ainda não são indepen-
dentes, não têm autonomia, mesmo o último e o
dedicado a Leopardi. Sua carta amável que os acom-
panha não deixou de me esclarecer alguma insu-
ficiência que senti ao ler seus versos, sem no en-
tanto ser capaz de designá-la pelo nome.
O senhor me pergunta se os seus versos são
bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mes-
ma coisa a outras pessoas antes. Envia os seus
versos para revistas. Faz comparações entre eles e
outros poemas e se inquieta quando um ou outro
redator recusa suas tentativas de publicação. Agora
(como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço
para desistir de tudo isso. O senhor olha para fora,
e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Nin-
guém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há
apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investi-
gue o motivo que o impele a escrever; comprove
se ele estende as raízes até o ponto mais profundo
do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor
morreria caso fosse proibido de escrever. Sobre-
tudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silen-
ciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desen-
terre de si mesmo uma resposta profunda. E, se
ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfren-
tar essa pergunta grave com um forte e simples
“Preciso”, então construa sua vida de acordo com
tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na
hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um
testemunho desse impulso. Então se aproxime da
natureza. Procure, como o primeiro homem, di-
zer o que vê e vivencia e ama e perde. Não escreva
poemas de amor; evite a princípio aquelas formas
que são muito usuais e muito comuns: são elas as
mais difíceis, pois é necessária uma força grande
e amadurecida para manifestar algo de próprio
onde há uma profusão de tradições boas, algumas
brilhantes. Por isso, resguarde-se dos temas gerais
para acolher aqueles que seu próprio cotidiano
lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os
pensamentos passageiros e a crença em alguma
beleza – descreva tudo isso com sinceridade ínti-
ma, serena, paciente, e utilize, para se expressar,
as coisas de seu ambiente, as imagens de seus so-
nhos e os objetos de sua lembrança. Caso o seu
cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, re-
clame de si mesmo, diga para si mesmo que não é
poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois
para o criador não há nenhuma pobreza e ne-
nhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que
estivesse em uma prisão, cujos muros não permi-
tissem que nenhum dos ruídos do mundo che-
gasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a
sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse te-
souro das recordações? Volte para ela a atenção.
Procure trazer à tona as sensações submersas des-
se passado tão vasto; sua personalidade ganhará
firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma
habitação a meia-luz, da qual passa longe o bur-
burinho dos outros.
E se, desse ato de se voltar para dentro de si,
desse aprofundamento em seu próprio mundo,
resultarem versos, o senhor não pensará em per-
guntar a alguém se são bons versos. Também não
tentará despertar o interesse de revistas por tais
trabalhos, pois verá neles seu querido patrimônio
natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma
obra de arte é boa quando surge de uma necessi-
dade. É no modo como ela se origina que se en-
contra seu valor, não há nenhum outro critério.
Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar ne-
nhum conselho senão este: voltar-se para si mes-
mo e sondar as profundezas de onde vem a sua
vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta
para a questão de saber se precisa criar. Aceite-a
como ela for, sem interpretá-la. Talvez ela revele
que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse
caso, aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e
sua grandeza, sem perguntar nunca pela recom-
pensa que poderia vir de fora. Pois o criador tem
de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo
em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou.
Mas talvez, depois desse mergulho em si
mesmo e em sua solidão, o senhor tenha de
renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito,
sentir que seria possível viver sem escrever para
não ter mais o direito de fazê-lo). Mesmo assim
não terá sido em vão o exame de consciência que
lhe peço. Seja como for, sua vida encontrará a partir
dele caminhos próprios, e que eles sejam bons,
ricos e vastos é o que lhe desejo mais do que posso
manifestar.
O que ainda devo dizer ao senhor? Parece-
me que tudo foi enfatizado da maneira apropriada;
por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo a passar
com serenidade e seriedade pelo período de seu
desenvolvimento. Não há meio pior de atrapalhar
esse desenvolvimento do que olhar para fora e
esperar que venha de fora uma resposta para ques-
tões que apenas seu sentimento íntimo talvez pos-
sa responder, na hora mais tranqüila.
Foi para mim uma alegria encontrar em sua
carta o nome do professor Horacek; guardo uma
grande estima por esse amável sábio, e uma grati-
dão que se mantém através dos anos. Por favor,
mencione a ele o que sinto; é muita bondade que
ainda se recorde de mim, e sei apreciá-la.
Devolvo também os versos que o senhor me
confiou amigavelmente. E lhe agradeço mais uma
vez pela grandeza e pela cordialidade de sua con-
fiança, de que procurei me tornar um pouco mais
digno do que realmente sou, como um estranho,
por meio desta resposta sincera, feita da melhor
maneira que pude.

Com toda devoção e toda simpatia,
Rainer Maria Rilke

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Olavo Bilac.

domingo, 8 de agosto de 2010

O tempo seca a beleza.

seca o amor, seca as palavras.

Deixa tudo solto, leve,

desunido para sempre

como as areias nas águas.



O tempo seca a saudade,

seca as lembranças e as lágrimas.

Deixa algum retrato, apenas,

vagando seco e vazio

como estas conchas das praias.

 
 
O tempo seca o desejo

e suas velhas batalhas.

Seca o frágil arabesco,

vestígio do musgo humano,

na densa turfa mortuária.



Esperarei pelo tempo

com suas conquistas áridas.

Esperarei que te seque,

não na terra, Amor-Perfeito,

num tempo depois das almas.

 
 
Cecília Meireles
No desequilíbrio dos mares,

as proas giram sozinhas...

Numa das naves que afundaram

é que certamente tu vinhas.





Eu te esperei todos os séculos

sem desespero e sem desgosto,

e morri de infinitas mortes

guardando sempre o mesmo rosto





Quando as ondas te carregaram

meu olhos, entre águas e areias,

cegaram como os das estátuas,

a tudo quanto existe alheias.





Minhas mãos pararam sobre o ar

e endureceram junto ao vento,

e perderam a cor que tinham

e a lembrança do movimento.





E o sorriso que eu te levava

desprendeu-se e caiu de mim:

e só talvez ele ainda viva

dentro destas águas sem fim.

 
 
Cecília Meireles
Entre mim e mim, há vastidões bastantes

para a navegação dos meus desejos afligidos.



Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.

Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.



Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,

só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.



Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.

Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,

e este abandono para além da felicidade e da beleza.



Ó meu Deus, isto é minha alma:

qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,

como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

 
                                                                                                                                     Cecília Meireles