"O amor quer o monopólio das faculdades da alma." Schiller

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A Criança que Fui Chora na Estrada

A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;



Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.



Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou

A vinda tem a regressão errada.

Já não sei de onde vim nem onde estou.

De o não saber, minha alma está parada.



Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar,



Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.



A Criança que Fui Chora na Estrada II
 
Dia a dia mudamos para quem

Amanhã não veremos.

Hora a hora

Nosso diverso e sucessivo alguém

Desce uma vasta escadaria agora.



E uma multidão que desce, sem

Que um saiba de outros.

Vejo-os meus e fora.

Ah, que horrorosa semelhança têm!

São um múltiplo mesmo que se ignora.



Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.

E a multidão engrossa, alheia a ver-me,

Sem que eu perceba de onde vai crescendo.



Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,

E, inúmero, prolixo, vou descendo

Até passar por todos e perder-me.



A Criança que Fui Chora na Estrada III
 
Meu Deus! Meu Deus!

Quem sou, que desconheço

O que sinto que sou?

Quem quero ser

Mora, distante, onde meu ser esqueço,

Parte, remoto, para me não ter.

Fernando Pessoa


Há Doenças Piores que as Doenças

Há doenças piores que as doenças,

Há dores que não doem, nem na alma

Mas que são dolorosas mais que as outras.

Há angústias sonhadas mais reais

Que as que a vida nos traz , há sensações

Sentidas só com imaginá-las

Que são mais nossas do que a própria vida.

Há tanta coisa que, sem existir,

Existe, existe demoradamente,

E demoradamente é nossa é nós...

Por sobre o verde turvo do amplo rio

Os circunflexos brancos das gaivotas...

Por sobre a alma o adejar inútil

Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
 
Fernando Pessoa